A Espada de um cavalheiro

 

Aproximadamente 35 anos atrás...

“O Arenque Sorridente” era um dos locais mais lotados nas docas a qualquer noite da semana. Nos limites do cais, esta famosa taverna era freqüentada por oficiais marinheiros e mercadores visitantes, bem como pelos mais abastados cidadãos de St. Augustin. Uma atmosfera exótica, decorada com motivos marinhos: peixes empalhados, partes de navios, arpões, cordas e redes de pesca. O espaçoso salão do Arenque podia abrigar quase 100 pessoas para beber, comer, fofocar e assistir às lutas que aconteciam todas as noites.

Naquela, um homem musculoso vindo dos Highland Marches veio para desafiar o campeão local, o enorme El Sepulturero. O highlander era realmente um bom lutador, e o combate foi difícil para ambos os lados para o deleite da platéia, que apostava freneticamente no resultado. Com um movimento súbito, o highlander conseguiu agarrar El Sepulturero e jogou-o para fora do círculo, mandando o gigantesco Castillan por sobre uma mesa e efetivamente encerrando a disputa. Enquanto o novo campeão levantava seus braços em vitória, El Sepulturero se preparava para descarregar sua frustração na pessoa mais próxima, e pensou que talvez o homem que estava sentado na mesa em que aterrisara iria servir perfeitamente. Levantou-se e virou com os lábios torcidos, mostrando os dentes ameaçadoramente...

 

...somente para dar dois passos para trás quando viu quem estava sentado, caneca de vinho na mão esquerda e prestando nenhuma atenção em absoluto ao corpo que arruinara a mesa que tinha à sua frente. Não deveria ter mais de 17 anos, vestia roupas de couro negro decoradas com botões dourados e laços, botas de cano alto e luvas grossas. Seu rosto tinha ângulos proeminentes no nariz e em seu queixo sem barba, era emoldurado por madeixas soltas de cabelo preto fino e liso, com olhos que olhavam para o nada, o único sinal que indicava que estava consciente dos seus arredores era a mão direita pousada no cabo ornamentado de seu florete. El Sepulturero recuou e vociferou um pedido de desculpas antes de ir-se, seus olhos evidenciando um medo que não combinava com sua aparência.

Quase ninguém na taverna reparou no acontecido, mas entre os que sim estava um homem austero que agora tinha um ar de interesse em sua face. Colocou de lado sua caneca e levantou, indo em direção ao rapaz que fez um monstro de quase dois metros de altura enfiar a cauda entre as pernas e sair como se Legião estivesse em seus calcanhares.

Estava agora diante do jovem, e limpou a garganta antes de falar:

“Quem é você, garoto, que até um mestre lutador teme irar?”

Sua questão não teve resposta. A figura de negro apenas bebericou seu vinho.

“Estou falando com você, menino.” Disse o homem, inclinando-se para frente. O rapaz virou seu rosto e apertou o cabo da espada:

“Eu não tenho vontade de falar. Quero apenas ficar sozinho com minha bebida. É melhor voltar para o seu lugar, porque não vou gastar mais palavras com você.” O garoto falou por entre os dentes, em um Castille que indicava uma educação refinada.

“Se não falar comigo, talvez falará com minha lâmina.” Disse o homem, afastando seu manto para mostrar sua própria arma. Cada um dos clientes nas mesas ao redor se levantou e se afastou, sentindo o cheiro de sangue que logo seria derramado enquanto o rapaz dava sua resposta:

“Me sinto bem hoje. Tão bem que lhe darei a oportunidade de se desculpar por seu comportamento rude e voltar para sua mesa com todo o seu sangue ainda dentro de você. Não prestarei atenção na ameaça velada que me fez. Sugiro que aceite estes termos e volte agora, antes que eu saque minha espada e faça com que seja carregado ao invés.”

“Para isso terá que provar que pode fazer mais com esse seu palito de dentes do que tirar sujeira de debaixo das unhas. Eu sou um espadachim, treinado sob a tutela do próprio Don Aldana. Você não está no meu nível, rapaz.” Disse o homem, puxando seu florete e assumindo sua posição. As pessoas formaram um círculo cercando os homens que iriam duelar como se outra luta de boxe fosse começar.

Ao ouvir estas palavras, o jovem largou sua caneca e levantou-se em silêncio. O homem considerou a falta de resposta como um sinal de medo, mas na verdade o rapaz já estava se concentrando. Seu relógio mental se ajustava a um ritmo, um compasso que o impelia a assobiar e dançar. Ao invés, sacou sua espada e balançou-a a sua frente, colocando seu braço esquerdo para trás e ficando na ponta dos pés, como seu pai havia lhe ensinado, em uma posição bastante parecida com a do espadachim desafiante.

“Me imitar só serve para me irritar, moleque. Vou te ensinar...” A bravata morreu em seus lábios assim que viu seu ataque ser defletido facilmente com um simples movimento do pulso do rapaz. Ele estocou novamente, e novamente as lâminas se beijaram e seu esforço falhou. Terceiro, quarto e quinto ataques também não foram mais bem sucedidos.

O jovem parecia estar em um transe, dançando uma música silenciosa enquanto sua espada se movia para frente e para trás acompanhando seu oponente; mas seu passo era mais harmônico, impunha o ritmo sobre o do homem mais velho, forçando-o a dançar SUA melodia. Suas fintas forçavam o inimigo a se estender só para aparar seus golpes, e logo o homem estava sem fôlego devido aos bem calculados ataques do jovem. O sorriso se foi e apareceu na face do rapaz, que impelia o oponente em direção à parede. Teve a oportunidade de acertar o rosto do homem com o guarda-mão do florete como um Vodacce uma vez lhe ensinara, mas não o fez. Podia facilmente ter trancado as lâminas após aparar, mas não o fez. Ele derrotaria o homem usando o estilo de seu pai.

“Don Aldana?” O rapaz disse desafiadoramente entre os arcos de sua espada. “Don Aldana é um ótimo espadachim. Um dos melhores.” Corte. “Também é um ótimo professor. Um dos melhores.” Estocada. “Um ótimo aluno também. Aprendeu com meu pai.” Defesa. “E saiu por aí ensinando o estilo que meu pai lhe ensinou como se fosse uma criação sua.” Estocada, corte, defesa, riposte. “Não passa de um ladrão. Um dos melhores.” Enganchou a espada do homem com a sua e torceu, enviando a arma do oponente para o outro lado do salão. O homem levantou os braços, rendido. “O farei pagar um dia. Até lá, humilharei em público cada um de seus alunos. O primeiro sangue,” disse, arranhando com a ponta do florete a palma da mão levantada “e a vitória.” Cortou a corda que segurava um pedaço de mastro pendurado no teto, fazendo-o cair sobre a cabeça do espadachim e colocando-o inconsciente.

Como um guerreiro treinado, virou-se com a lâmina levantada, preparado para lutar seu caminho através de quem quer que viesse vingar o homem derrotado. Mas ao invés de inimigos encontrou sorrisos, olhos que não tinham ira, mas sim alegria pelo espetáculo com que foram agraciados. O garoto balançou sua espada em uma saudação, embainhando-a no mesmo movimento e arrancando aplausos da platéia. Dois homens levantaram o espadachim caído e o levaram, e uma linda garçonete lhe entregou uma nova caneca de vinho, dizendo:

“Essa, e o resto da noite, é por conta da casa.”

Pegou a bebida e beijou a mão da moça, que, corada, se afastou. Sentou-se em uma mesa vazia para apreciar seu vinho.

“Um homem galante, bem como honrado e habilidoso.” Disse um homem barbado sorridente que sentou na outra cadeira livre da mesa, com uma caneca na mão. “Don Aldana é um nobre poderoso, primo do próprio Rei Salvador, pelo que ouvi. Um inimigo perigoso de se ter.”

“Sei disso. Sei que não posso afetá-lo hoje. Mas sou jovem e não tenho pressa. Me aprimoro em minha arte enquanto penso em um plano para fazê-lo pagar sua dívida de honra com meu pai.”

“Um homem de visão, também. Seria muito perguntar se também é um homem do mar?”

“Não. Não sou. Mas ouvi dizer que o mar pode trazer muito para um homem. Inclusive riqueza. Riqueza que poderia recomprar o título de meu pai e me deixar mais próximo de Don Aldana.”

“E riqueza é o que eu tenho para lhe oferecer. Eu sou o homem conhecido como Philip Gosse, e ouvi falar de você quando aportei aqui em St. Augustin semana passada. Homens de caráter e com o espírito de aventura são bem-vindos em minha tripulação, junte-se a ela e riqueza e emoção não faltarão em sua vida. Só não sei ainda seu nome, diga-me para que eu saiba como chamar alguém que parece ter nascido com uma espada.”

“Não nasci com a espada, adquiri-a com o tempo. Do mesmo modo, o nome que uso agora não é o com qual nasci, e também trás sua arma junto. Você pode me chamar de Torvo. Torvo Espada.”

“Então, jovem Espada, me acompanhe de volta ao Uncharted Course, e começaremos sua nova vida.”

 


Comecei a escrever esta série no meio de 2000, e os primeiros dois capítulos circularam na mailing list de 7th Sea e no site Revenants.com sob o título Tales of Espada. Gentleman's Sword era o nome original desse primeiro conto.

Como aconteceu com um outro trabalho sobre 7th Sea que eu fiz (ver a série Negócios e Acordos) a estória oficial do mundo diferiu quando falou sobre o jovem Torvo. Mas diferente do que aconteceu com aquela, a oficial não conflitava completamente com o que eu havia escrito, fez o que eu achei pior: tirou todo o carisma da personagem.

Eu (e outras pessoas dentro e fora da lista) acharam que teria sido melhor se os Tales of Espada tivessem se tornado oficiais. Pelo menos Torvo aqui continua com a mesma inspiração heróica que sentimos quando vimos o card pela primeira vez...