Simpatia pelo Diabo

 

Ainda bem que não estava ventando. Muito.

Maurício olhou pra baixo apesar de saber que não devia fazer isso. Sabia que não devia fazer muitas coisas, mas fazia assim mesmo, do mesmo jeito que não fazia o que devia fazer. Sabia que não devia ter feito faculdade de jornalismo, mas fez. Sabia que devia ter feito algum concurso público pra fiscal de alguma coisa – já que como jornalista não ia rolar, mas não fez.

E agora, desempregado, sabia que não deveria estar roubando, mas estava. É claro que não tinha coragem de apontar uma arma pra alguém ou de agarrar uma bolsa e sair correndo. Era até esperto – não muito, se fosse tinha arrumado um jeito melhor (e talvez mais honesto) de ganhar a vida – e estava mais ou menos em forma. Em homenagem à infância passada pulando muros e portões então, achou que dava para começar uma carreira como gatuno.

O primeiro passo foi freqüentar umas casas de forró por aí e cantar umas meninas, até achar uma que fosse empregada em alguma casa de família. Ainda teve que comer cinco antes de achar uma que desse a letra certa pra ele: apartamento, quarto andar, donos viajando, prédio sem muita segurança...

E lá estava ele agora. O prédio tinha umas varandas que davam para o lado, tornando relativamente fácil a escalada. Era só tentar não fazer barulho e chamar a atenção de alguém nos apartamentos de baixo ou no prédio do lado. Mas eram 3 horas da manhã de Quarta-feira, quem não estivesse dormindo deveria ter um bom motivo para estar acordado e não ia ficar prestando atenção em barulhinhos na madrugada.

Quarto andar. Não tinha grades. Só abrir a porta da varanda, dar uma circulada, procurar alguma coisa fácil de carregar - jóias, máquinas fotográficas, talões de cheque, dinheiro (quem sabe uns dólares?).

Muito fácil levantar o trinco pelo lado de fora. A porta abriu sem barulho, e não dava para enxergar nada. Não ia ser idiota de acender a luz, então puxou uma lanterninha de chaveiro que deveria ajudar.

Apontou para os lados, por cima dos móveis da sala. TV pequena, VHS, sem DVD. Será que esse povo tinha alguma coisa que prestava em casa? Foi se aproximando do que parecia ser a porta do corredor. Se enganou, era a da cozinha.

<grrr>

Que era aquilo?

<growlllllfffffffffffRRRRRRRRR>

Cachorro? Aquela vagabundinha não tinha falado nada de cachorro! E não era um cachorrinho, era uma porra de um rottweiller que devia pesar uns sessenta quilos e que era capaz de comer a mão de Maurício com uma bocada só.

Um passo pra trás, dois do cachorro pra frente. Vamos lá, é só chegar na varanda, fechar a portinha, descer, ir pra casa e arrumar um emprego de manhã. Mas o Cujo da Barra Funda não estava muito inclinado a cooperar. Resolveu dar um salto e tentar abocanhar pelo menos um naco de carne pra passar o resto da noite sem fome. Como Maurício prezava muito seu corpo, disparou pela porta e saltou a mureta, antes de lembrar que estava no quarto andar.

Tem aquela velha estória que diz que as pessoas quando morrem vêem a vida inteira passar diante dos olhos. Só que 15 metros de altura não dá muita coisa, pouco mais de um segundo, e Maurício mal tinha acabado de se ver entrando no ginásio quando sua cabeça bateu no pavimento lá embaixo.

  


 

Parecia que estava com a cara numa poça d’água. Maurício despertou lentamente. Era uma sala, talvez um escritório, e estava deitado em um tapete. Tinha uma mancha de sangue onde ele estava com a cabeça apoiada. Sobressaltou-se e lembrou do cachorro, do salto e da queda, sentando-se rapidamente e passando a mão na testa, sentindo o ferimento e sangue escorrendo.

Seus dedos podiam sentir as lascas de osso que perfuravam a pele. Sentiu a carne em volta dos olhos inchada, e percebeu que não conseguia abrir o olho esquerdo completamente. Seus braços e pernas também doíam muito, havia escoriações em seus antebraços e seu pulso direito estava em uma posição estranha.

“Caralho! Preciso ir prum hospital...”

“Você JÁ foi pro hospital.”

Maurício se assustou ainda mais com a voz que veio de trás dele. Virando-se, viu que realmente estava em um tipo de escritório, com as paredes ocupadas por estantes enormes cheias de livros, pastas, papéis e mais um monte de coisas, de uma forma mais ou menos ordenada. Tinha uma escrivaninha grande, daquelas massivas, pesadas, estilo antigo de madeira escura, também atulhada de papéis e livros. Ainda tinha uma porta que saia do canto esquerdo da parede atrás da escrivaninha, e um homem sentado atrás desta em uma cadeira de couro verde escuro.

“Como assim já fui pro hospital? Quem é você? Onde eu estou? Como eu vim parar aqui?”

“Uma pergunta de cada vez, senão vamos nos perder nas respostas. Sobre o hospital, na verdade foi só uma formalidade. Os bombeiros do resgate não estavam muito a fim de preencher um relatório de ‘morto no local’, então mandaram você pro hospital pra ser declarado morto lá. Isso acontece muito, quantas vezes você já não viu no jornal ‘levado ao hospital, mas não resistiu aos ferimentos’? Um monte, né? Faz os médicos parecerem incompetentes, quando tudo se deve à boa e velha preguiça.”

“Peraí, peraí, que que é isso de morto no local, cara? Quem morreu?”

“Está vendo, já tem uma quinta pergunta se metendo no meio das outras. Por isso que é bom fazer uma de cada vez. Quem morreu foi você.”

“Ah, vai se foder. Eu não morri porra nenhuma. Eu estou aqui falando, não posso estar morto. Tô todo fodido, mas não estou morto.”

“Morreu sim. Você ainda sente o desconforto dos seus ferimentos psicossomaticamente, já que você na verdade não tem mais corpo. Quando você aceitar isso, os ferimentos vão desaparecer.”

“Ta certo então, seu doido. Se eu morri, o que eu estou fazendo aqui ao invés de estar lá no IML? Cada maluco...”

“Deixa-me ver sua ficha, hummm... é, isso mesmo. Católico não-praticante, nesses dias é tudo que eu recebo por aqui. Nunca se confessou, blá blá blá... ahá, mas o que te trouxe aqui foi o último pecado mesmo.”

“Tá, agora já cansei da brincadeira. Onde fica o pronto-socorro, que essa merda tá doendo pra caralho.”

“Não estou brincando. Você cometeu um pecado mortal, não se confessou, não foi perdoado e teve sua alma rejeitada no paraíso. Então te mandaram pra cá. Eles bem que podiam ter te explicado isso, mas lá, sabe como é, é foda. Linha de montagem total, nem esperaram você acordar, já analisaram tua ficha e deram a descarga.”

“Tá me zoando, certo? Aqui não pode ser o...”

“Inferno? É, é aqui sim. Desapontado?”

“Isso é sério mesmo? Não é possível que eu tenha morrido.”

“Você caiu do quarto andar de cabeça. Impossível seria estar vivo.”

“E você então é... o Diabo?”

“Eu mesmo. Já se convenceu?”

“Não. Esse negócio de estar morto não deu pra engolir. Tem certeza que isso não é uma pegadinha? Cadê a câmera?”

“Eu lhe asseguro que você realmente morreu. Acontece, quando você nasceu já devia saber que um dia ia morrer. Você pode ficar aí se questionando se está morto mesmo ou não, mas não vai fazer diferença. Só vai fazer você perder tempo, que eu realmente esperava que a gente usasse pra conversar. É meio solitário ficar aqui às vezes, e quando aparece alguém geralmente é um tipo muito babaca. Você me pareceu gente boa e achei que ia dar pra trocar uma idéia legal. Quanto à pegadinha, eu por acaso pareço com o Ivo Holanda?”

“Ah ah ah! Não, mas você também não parece o Diabo.”

“Por que todo mundo que aparece aqui fala isso? Não que seja muita gente hoje em dia, mas achei que lá fora as pessoas já estavam um pouco mais esclarecidas. Bem, mas não se pode culpá-los, o outro pessoal faz um ótimo trabalho em pintar a minha caveira. Pelo menos você não é um daqueles que esperava que eu fosse a cara da Elizabeth Hurley.”

“Bem que podia, ia ser mais agradável. E é um filme legal, até.”

“Eu também achei. Mas depois dele teve uma nova leva de pessoas querendo vender a alma em troca de favores... como se eu me interessasse por isso.”

“E não se interessa?”

“Pra que que eu vou querer mais almas? Já mal agüento as que eu tenho que receber por aqui que morrem.”

“Sei lá. Mais almas não te deixam mais poderoso em sua guerra contra Deus?”

“Guerra? Porra, eu tinha ficado tão feliz lendo sua ficha e achei que ia ter uma conversa interessante pela primeira vez em anos e lá vem você com a mesma merda de sempre. Bando de gente ignorante que tem na Terra mesmo viu, vai tomar no cu...”

“Dá um tempo, tá? Primeiro você acaba de me dizer que eu morri, que eu vim pro inferno só porque tentei um roubo fracassado e fica indignado quando eu me surpreendo com o que eu encontro aqui? Ainda nem aceitei direito essa de eu ter morrido, preciso digerir ainda que o Diabo é você e não aquilo que sempre me pintaram.”

“Tem razão. Desculpe. É que me deixa muito puto tudo isso de guerra com Deus, Príncipe do Mal, blá blá blá. Novamente, é coisa da propaganda deles. Pense comigo, como que alguém pode supor que eu ia querer guerrear com Ele? O cara é todo-poderoso, eu não teria a mínima chance. O que aconteceu foi que eu combinei com ele que ia sair de lá, que eu precisava de um pouco de independência, viver minha própria eternidade, coisa assim. Não achei que ele fosse ficar tão mordido com isso. Foi só eu achar um lugarzinho pra ficar e começaram a bater na minha porta. Eram almas de um pessoal muito escroto que o grandão lá tinha botado pra fora do céu. Agora tinha regras pra ir e pra ficar lá. Quem fazia as coisas do jeitinho que ele queria ficava lá com ele. O resto ele mandava pra cá. E pior que ainda dizia que eu ia puni-los pelos pecados deles.”

“E você não faz isso?”

“E eu lá sou empregado Dele? É uma falha lógica. Porque eu iria punir as pessoas que violam as leis de conduta que o meu suposto inimigo estabeleceu? Se eu fosse realmente inimigo dele eu daria prêmios pras almas que pecam, não?”

“Faz sentido.”

“Mas eu não sou inimigo nem empregado dele. Sei lá o que que eu sou hoje em dia pra Ele. Mas as pessoas que são barradas na portaria lá são mandadas pra cá, e eu tenho que dar um lar pra elas. Se muitas almas ficarem soltas pelo mundo elas começam a influenciar as pessoas vivas a terem mais filhos para poderem reencarnar e vai ter um surto de superpopulação. Aí a porra do planeta vai ficar uma merda maior do que já está.”

“Mas e as outras religiões? Elas também não cuidam das almas das pessoas?”

“A maioria das religiões faz parte da franquia dele. Pelo menos as maiores. Ele é o Deus dos judeus e dos cristãos, o Alá dos muçulmanos, o triunvirato dos hindus e mais uma porrada de crenças. Pra cada um ele colocou as condições para ascender ao paraíso, que na verdade é tudo o mesmo lugar, chame do que for. E os indesejáveis dessa ou daquela religião vêm pra cá. Você não sabe como é foda convencer os indianos que eu sou Kali, é mais fácil convencer quem sempre acreditou nos chifres e no bigodinho...”

“Então todas as religiões na verdade têm o mesmo deus? Que foda!”

“Não todas. Hoje em dia você encontra uma ou outra por aí que tem o seu panteão próprio, mas é raro. Antigamente tinha mais, como na Grécia, que tinha os Olímpicos. Cheguei a conhecer alguns deles, uns eram legais, outros eram um pé no saco. Não sei o que houve com eles, um dia simplesmente sumiram e levaram embora quase tudo que fazia parte da mitologia deles. Até o Hades, que morava aqui perto, levou boa parte do que tinha no reino dele embora. Sobrou uma ou outra alma que eu acabei trazendo pra cá. Uma delas me disse que tinha alguma coisa a ver com um pessoal que tinha fugido e eles iam tentar prender de novo.”

“Simplesmente foram embora? E as pessoas que acreditavam neles?”

“Na época que eles foram já não tinha muita gente que ligava pra eles. Não posso condená-los, quando dá vontade de ir embora temos que ir mesmo, não se pode olhar pra trás.”

“Você olhou, quando saiu do paraíso?”

“Lógico que olhei. Não foi uma decisão fácil. Não era ruim ficar lá, mas nitidamente faltava alguma coisa. Algo que tinha na Terra e não tinha lá.”

“Livre arbítrio?”

“Ah! Livre arbítrio? As pessoas que realmente exercem seu direito de livre arbítrio geralmente estão no sanatório. Poucas decisões são tomadas independentemente, sempre estão presas a motivos, desejos, aos interesses de outras pessoas, à moral do próprio decisor... não, o que eu procurava era incerteza.”

“Não entendi.”

“A verdadeira liberdade consiste em não conhecer os atos reservados ao futuro. Se você sabe como vai ser o dia de amanhã suas opções ficam restritas, quanto menos você sabe sobre o que vai acontecer mais livre você é.”

“Continuo não entendendo. Filosofia não é o meu forte, cara.”

“Enquanto eu estava no paraíso, eu sabia o que eu tinha que fazer, o que os outros tinham que fazer e o que o Senhor queria que nós fizéssemos. Mesmo que fizesse coisas diferentes, ainda assim no plano geral eu estava restrito. Eu pensava em como seria se eu não soubesse o que tinha que fazer. Se não houvesse o que fazer. Se tivesse que fazer algo para que houvesse coisas para fazer. Então pedi pra sair.”

“E valeu a pena?”

“Sinceramente não. Se dependesse só de mim teria valido, mas como eu já te disse logo ‘alguém’ arrumou alguma coisa para eu fazer. E como eu não tenho 100% de livre arbítrio não podia simplesmente dizer foda-se e largar tudo. Tenho uma responsabilidade com o mundo, afinal. Então fico aqui tomando conta das almas, mesmo que sejam tão poucas hoje em dia.”

“E por que isso? Por que você sente responsabilidade pelo mundo?”

“Novamente você faz duas perguntas ao mesmo tempo. Bem, sinto responsabilidade porque faço parte dele. Posso não ser humano mas fui feito pelo mesmo criador e mais ou menos com a mesma fórmula, então acho que se eu simplesmente deixar o barco correr eu vou ser um belo dum escroto, parecido com os panacas lá em cima, e não tô nem um pouco a fim disso. Já o fato de vir poucas almas pra cá é por causa dessa abrangência atual das religiões. Antigamente era difícil ver diversidade religiosa em uma mesma cidade, então tinha muito mais gente que seguia a religião só por inércia, por pressão, então se pecava bastante naquela época. Hoje em dia se o cara não está satisfeito com os mandamentos da igreja católica ele vai até a esquina e se converte ao budismo. São menos dogmas sendo quebrados, menos pecados. Fora isso, andaram relaxando um pouco as regras lá em cima – eles também estão preocupados com aquele problema de superpopulação que eu te falei. É mais fácil ser perdoado pelos pecados. Porra, o Hitler entrou lá!”

“Tá me zoando.”

“Não tô não.”

“Caramba, e eu não entrei só porque tentei roubar um apartamento!”

“Na verdade, sua ficha diz que você veio pra cá porque se suicidou.”

“Quê? Eu não me suicidei não! Cacete, eu tava fugindo do cachorro e caí! Quem foi que analisou isso?”

“Você pulou por conta própria. Vale como suicídio. É o único pecado que não dá pra se confessar, e te barra de cara na porta do paraíso.”

“Mas Hitler também se suicidou! Como ele entrou?”

“Não, não se suicidou não. Ele foi capturado e torturado pelos soviéticos. E não tem nada que carimba o teu bilhete de primeira classe pro paraíso como ser martirizado por infiéis ateus.”

“Caramba... Então é assim que rola? Nada de purgatório que nem o Dante diz? As almas que não podem ir pro paraíso vêm pra cá. E ficam fazendo o quê?”

“O que quiserem. A não ser as de Judas, Brutus e Cassius, que eu fico mastigando..."

"Aãnh?"

"Tô brincando. É que você falou do Dante, eu não resisti. Na verdade, a maior parte do tempo as almas só confraternizam entre si. Não vou tentar te enganar, tem muita gente escrota lá dentro, mas até aí não é muito diferente do mundo dos vivos, né? Talvez seja até um pouco mais palatável, já que boa parte dos hipócritas geralmente vai pro outro lugar...”

“E é divertido?”

“Cada dia melhor. Acho que até o final da década vai ter o Ramones completo lá.”

“Então acho que realmente vai ser melhor que a vida, mesmo.”

“Você não curtia muito sua vida?”

“Curtir eu curtia. Tentava sempre espremer o máximo de felicidade que dava sem ser um babaca. Acho que eu me sentia que nem você, tinha um sentimento de responsabilidade com não deixar o mundo ficar pior do que está. Problema que às vezes era impossível deixar de pensar que só sendo um dos babacas, sendo egoísta, mesquinho, ganancioso, falso e prepotente que dava pra se dar realmente bem no mundo.”

“Não é verdade.”

“Não?”

“Não. Acho que só tornaria as coisas mais fáceis.”

“Ah, não me venha com esse papo de que o sofrimento potencializa a felicidade. Não cola, é desculpa para se conformar. Me admira você falar isso, sendo que essa era a principal picuinha que eu tinha contra o catolicismo.”

“Não, não é isso que eu quero dizer. Deixa eu ser mais claro, você acha realmente que as pessoas que eram daquele jeito eram mais felizes?”

“Acho que sim.”

“Ou só significava o que você já disse, que eles se davam melhor? Felicidade consiste em atingir objetivos, cumprir as próprias expectativas. E se essas pessoas tinham motivações maiores do que aquelas que conseguiam atingir? Elas seriam infelizes do mesmo jeito, não?”

“É possível. Mas realmente você há de convir que há algo de errado com o sistema de estímulo e recompensa. Por exemplo, uns meses atrás eu fui almoçar em um restaurante por quilo no centro da cidade e tinha uma porrada de guardas municipais almoçando. Sentei em uma mesa sozinho, e não pude evitar escutar a conversa da mesa do lado, que tinha dois guardas. Um deles estava reclamando com o outro porque havia sido transferido para o centro. Sempre havia trabalhado direitinho, não se atrasava, não tinha nenhuma reclamação dos superiores, nada. E falava dos ‘maus elementos’ que tinham ficado lá, trabalhando no distrito de bairro dele, tranqüilo, enquanto ele que sempre foi um modelo tinha ido parar lá na boca do lixo.”

“E o que você acha disso?”

“Acho que nem ele nem os superiores dele estavam errados. Ele estava certo de querer ser recompensado com um trabalho agradável por seus bons serviços, mas os superiores também estavam certos em mandar alguém que era bom naquilo que fazia e confiável para ajudar a botar ordem em uma região problemática.”

“E você disse que não era bom de filosofia... mas diga, e aí, qual a sua opinião sobre isso?”

“Nenhuma. Só queria dizer que não tinha ninguém errado na situação, e mesmo assim quem tinha feito a coisa ‘certa’ estava se fodendo. O universo está errado, é isso.”

“Acho que não é o universo. É a doutrina que é passada de geração para geração de que existe algo como ‘recompensa cármica’. Bobagem. Não é porque você chutou um gato quando era criança que você bateu o carro quando tinha 50 anos. Não é porque você deu dinheiro pra uma velhinha no metrô que você vai ganhar na loteria. As pessoas não deveriam ser motivadas a fazer a coisa certa esperando uma recompensa algum dia. O que é certo deveria ser feito pelo que é certo. John Nash chegou perto, mas ainda estava pensando muito em termos de recompensa quando trabalhou na Teoria dos Jogos. Mas é bem por aí, os resultados comunitários são maiores se existe mais cooperação e menos competição. É claro que não se pode eliminar completamente a competição, ou o progresso não ocorre. Tem até agora uma teoria administrativa chamada 'Coopetition' baseada nisso.”

“Mas então qual é o motivo de fazer a coisa certa?”

“Você não escutou? Porque é o CERTO. Ponto. Se for necessário um estímulo, pense que é porque daí você vai ter a verdadeira, poucas vezes percebida e reconhecida, recompensa: saber que você não é um dos escrotos.”

“E mesmo assim vir para o inferno.”

“Grande coisa ir lá pro paraíso. Tudo marketing. Lá não tem muito mais o que fazer que aqui. A diferença é que lá eles ficam ameaçando que se você não andar na linha eles te mandam pra cá. E como você não sabe como é aqui, fica acreditando no que eles dizem de torturas eternas, caldeirões ferventes e agonia sangrenta. E anda na linha por medo.”

“E aqui é melhor.”

“Bem, eu não fico ameaçando ninguém de mandar eles pro paraíso. E como eu disse, tem muita gente ruim aqui, mas também tem bastante gente legal. Ambrose Bierce, Paulo Francis, Mahattma Ghandi. Acho que mais do que tem lá no outro lugar. Mas você vai ver daqui a pouco.”

“Tá na hora de eu ir?”

“Sim.”

“Você tem alguma outra coisa pra fazer?"

"Sim. Eu gostaria de gastar a minha eternidade conversando, acho que eu pensava nisso quando saí de lá de cima, mas já te falei né, arrumaram um emprego pra mim e agora tenho que trabalhar."

"Sabe, você não é tão ruim como diziam, mesmo. Me lembra daquela música do Rolling Stones, Sympathy for the Devil.”

“Eu detesto essa música.”

“Tô falando mais pelo título. Você é realmente um cara legal.”

“Eu tento ser. Às vezes eu estou de mau-humor e sou um pé no saco.”

“Então, como que eu faço?”

“Só entrar nessa porta aqui atrás de mim. Faça amizades. E tente arrumar alguma coisa pra fazer, a eternidade por vezes chega a ser bem chata. Quando eu tiver um tempo eu dou uma passada lá e a gente toma uma cerveja, eu te apresento pro Dali.”

Maurício levantou-se do chão. Viu que os ferimentos no seu braço haviam sumido. Sua testa não doía mais. Fez um aceno com a cabeça e levantou o polegar em um cumprimento ao Diabo, e foi até a porta. O Diabo pegou alguns papéis em sua mesa e os examinava, sorridente.

Sua mão se deteu ao encostar-se à maçaneta da porta. Um arrepio passou por sua espinha, os pelos da nuca se eriçaram.

“Só uma coisa.”

“Sim?”

“Você é o Diabo, não é?”

“Pensei que isso tinha ficado claro na nossa conversa. Acho que você bateu a cabeça muito forte mesmo...”

“Como que eu vou saber se tudo isso que você me disse é verdade? Teoricamente você é o Príncipe das Mentiras, o Mal Encarnado. Talvez tudo isso que você tenha me dito tenha sido uma forma cruel de tortura, vai me fazer entrar aí dentro esperando uma eternidade tranqüila e ao invés disso eu vou encontrar o tormento eterno. Por que eu deveria acreditar em você?”

“Por que não acreditar? Se eu falei a verdade? Você não pode saber sem entrar. Você pode ou não acreditar em mim. A única certeza é que não importa se eu te enganei ou não, você VAI ter que ir, e você VAI ter que passar a eternidade lá dentro. Isso eu já te disse, e pode acreditar que é verdade. Todo o resto que eu falei não vai fazer a menor diferença para o destino que te espera do outro lado, tampouco faz diferença o que você acredita ou deixa de acreditar, ou mesmo o que você vai fazer ou deixar de fazer. Se te deixar mais feliz saber que eu falei a verdade, bem, eu digo que é. Você vai ter que confiar em mim.”

Disse isso e voltou a ler os papéis que tinha na mão. Maurício respirou fundo, girou a maçaneta, e, de olhos fechados, entrou. A porta se fechou atrás dele.

 

E o Diabo, sentado em sua escrivaninha, mais uma vez sorriu.