O Acaio

 

O suor corria por sua face queimada pelo sol inclemente, ardendo e irritando seus olhos como a água salgada do mar. Um gosto acre lhe chegava a boca, fazendo com que cuspisse de modo constante. Tentara ajeitar o elmo do modo mais confortável possível, acima da cabeça; se ele estivesse abaixado no rosto, o ar se tornaria viciado e não conseguiria respirar, sufocando-se.  A pesada placa peitoral de bronze se tornara um fardo através dos tempos, tornando difícil sua permanência em pé. Tinha apoiado nas pernas o pesado escudo, já bem amassado e desgastado devido aos constantes entrechoques. Amarrou a kopis, a espada curta e encurvada, às costas, deixando a cintura livre para prender um pequeno machado. Olhava para os cortes em suas mãos, braços e pernas. A carne estava maltratada e bem áspera, muito diferente de quando chegara aqui, há quase dez anos. Era um garoto de dezesseis verões ao ver essas praias pela primeira vez. Podia se recordar do verde transparente e límpido de suas águas, muito diferente do viscoso vermelho de atualmente. Olhou para as fileiras ao seu lado e tentava lembrar das faces de alguns de seus companheiros de armas que também tinha aportado nessas terras com a mesma idade. Parecia não reconhecer os rostos. Adônis sentiu uma súbita melancolia envolver-lhe e engoliu em seco.

Trombetas soaram e tambores retumbaram. Durante todos esses anos, esses sons se tornaram familiares a Adônis a aos demais. Mas hoje, em especial, eles pareciam ser diferentes, mais fortes, e recebidos com maior regozijo. A sensação talvez estivesse ligada ao fato de que o príncipe Aquiles estava retornando a luta, depois de passar semanas em sua tenda sem sair nem mesmo para alimentar-se. Parecia que Agamenon, o rei de Micenas e comandante supremo dos exércitos acaios, o tinha ofendido ao tomar uma mulher que lhe pertencia e então, em represália, decidira abandonar a guerra. Mas um incidente mudou o andamento das coisas: Pátroclo, a quem Aquiles considerava um irmão, resolvera colocar a armadura do príncipe e incitar os guerreiros a luta. Foi então que recebera um golpe mortal ao travar combate com o príncipe troiano, Heitor. Todos no campo reconheciam o valor de Pátroclo em batalha, mas ele estava longe de se comparar às habilidades de seu algoz troiano. Quando soube da notícia da morte de seu amigo, Aquiles correu de mãos nuas em direção às muralhas de Tróia. Foram preciso dez homens para segurá-lo e assim imobilizá-lo, impedindo-o de se aproximar demais dos arqueiros inimigos. Estava tomado de tamanha fúria que jurou que derrubaria as amuradas com os punhos, se assim fosse necessário apenas para alcançar Heitor e tirar-lhe a vida. Durante alguns dias os acaios ficaram em luto em memória do guerreiro tombado, realizando-se jogos fúnebres e banquetes em sua memória. Mas a guerra não podia esperar mais... E nem Aquiles. O príncipe acaio saiu de sua tenda e correu os olhos, até que encontrou os de Agamenon. Não disseram qualquer palavra ou fizeram gestos, mas ambos pareciam saber o que o outro pensava.

À medida que caminhava para frente das linhas, urros e gritos de guerra saudavam o campeão acaio. Os mirmídones, os soldados de Aquiles, eram os mais animados e empolgados com a volta de seu líder. Sentou-se em uma requintada poltrona bem acolchoada acomodada na areia macia. Fez apenas um gesto e logo duas mulheres, cativas troianas, correram em sua direção, carregando peças de armaduras.Trataram de ajoelhar-se e começar a atar, à suas pernas, as grevas de bronze, forradas de couro de boi. Depois foi a vez dos punhos serem envoltos com tiras de couro e protegidos com braceletes de puro ferro. Não quis colocar o peitoral de bronze, deixando o peito sem proteção. Após equipá-lo, as duas moças permaneceram sentadas à sua frente, com o olhar direcionado para a areia. Aquiles afagou gentilmente os cabelos das duas jovens e em seguida as dispensou. Um dos oficiais mirmídone aproximou-se, trazendo o escudo de Aquiles e seu elmo banhado a ouro com a grande crina enegrecida. Levantou-se e os apanhou. Andou até as dezenas carros de combate que estavam posicionados em linha maciça e subiu no seu. Adônis tinha reparado o quanto o príncipe acaio permanecia jovem, mesmo depois de dez anos de guerra. Bem, talvez seja mesmo verdade o que dizem sobre Aquiles e sua divindade. Deuses não envelhecem... Pensou Adônis, fazendo um sinal devoto.

Aquiles colocou o elmo sobre a vasta cabeleira escura, que se assemelhava com a juba de um leão, e atou uma das tiras do escudo ao seu ombro. Pegou alguns dardos de arremesso, pesou-os e escolheu três dos melhores, colocando-os dentro do carro de guerra. Agamenon também se equipara, ostentando sua preciosa armadura de ferro, cravejada de jóias. Ao seu lado estava seu irmão mais novo, Menelau, rei de Esparta. Tinha sempre o semblante entristecido e era de poucas palavras. Passava horas e horas olhando as muralhas de Tróia na esperança de ver aquela por quem tinha feito toda essa guerra: Helena de Esparta, sua esposa e a mais bela mulher de todo o mundo, concebida de deuses e com cuja dádiva Afrodite a abençoara. Era dito que sua beleza tinha o poder de enfeitiçar corações e almas, tanto de homens como de titãs. Menelau passou com seu carro de combate próximo ao de Aquiles, que lhe acenou com a cabeça. Havia estórias percorrendo o acampamento onde se dizia que o próprio Aquiles desejava tomar Helena como amante, mas nada estava provado. Agamenon adiantou-se à frente das fileiras e começou a discursar:

 

-         Guerreiros e irmãos, ouçam-me! Eu, Agamenon, rei de Micenas, os saúdo! Durante anos têm permanecido ao meu lado, lutando contra um rei indigno, cujo filho ousou macular a honra de meu irmão ao roubar-lhe a esposa e mãe de seu filho...- parou um momento, pousando a mão no ombro de Menelau e depois continuou. - Não hesitaram em vir ao meu chamado quando mais precisei e tenho a honra de reconhecer em todos aqui como pessoas tão próximas, cujos laços são mais fortes do que qualquer parentesco. Sua lealdade será recompensada, não tenham dúvida. Os portões de Tróia estão próximos e lá, como todos aqui bem sabem, encontram-se riquezas inimagináveis, guardadas aos longos dos anos de pesados pedágios, cobrados pelo rei troiano apenas para que se pudesse passar através de seus estreitos. Mas nós, homens justos e nobres, não mais iremos permitir que isso continue acontecendo! Tomem o que é de direito de vocês! Tanto sangue acaio derramado nessa terra inimiga e distante não terá sido em vão. A queda de Tróia está próxima, irmãos, eu lhes garanto!

 

Novamente, houve um clamor entre as fileiras. A cobiça ainda perpetuava o pensamento de muitos. Outros, entretanto, ficariam felizes apenas com a possibilidade do breve retorno para casa. Adônis trocaria toda sua parte no saque, apenas para poder ter a certeza de ver seus familiares novamente.

Mulheres carregando ânforas com água passavam servindo os guerreiros. Todos deveriam beber o máximo que pudessem, pois muitas vezes a batalha demorava quase um dia inteiro, sem cessar. Adônis comia um pedaço de carne de carneiro ressecada, pois esse poderia ser o único alimento durante horas. Conseguira também algumas batatas cozidas com um outro soldado, trocando-as por um grande pedaço de broa de milho. Mastigou tudo o mais rápido que pôde e posicionou-se com o escudo erguido e lança em riste. Agamenon deu a ordem para o avanço.

Os acaios puseram-se em marcha, com passos fortes e cadenciados. Conheciam esse caminho de morte, percorrido durante anos e anos. À frente iam os líderes e os maiores guerreiros, com seus carros de combate. Logo atrás vinham os milhares de homens em formação de falange, com as linhas cerradas e intransponíveis. Eram mais de quinhentos escudos em linha, com outros quarenta de profundidade, totalizando uns vinte mil homens. Na reserva, havia ainda mais dez mil. As dezenas de aríetes eram empurradas por cativos troianos e as escadas de assalto também eram carregadas por outros prisioneiros.

O exército parou assim que foram vistas as estacas cravadas na areia. Isso servia para que se medisse o alcance das flechas troianas, evitando-se  assim ficar em seu raio de ação. Adônis sentiu o frio percorrer-lhe o estômago assim que viu as imensas muralhas que se erguiam à sua frente. Não se acostumara com essa visão. Sempre imaginara se a cidade já não servira de morada para algum titã, em uma época remota. Os colossais portões bem que poderiam servir para a passagem de algum deus. Bem acima podia ver arqueiros se posicionando e mulheres que costumavam assistir aos combates. Os tonéis e caldeirões com azeite já estavam fumegando, prontos a serem despejados em qualquer um que ousasse escalar os muros. Lembrara-se que em certa ocasião, os troianos jogaram areia escaldante nos soldados que subiam as amuradas.

Quando Agamenon se preparava para iniciar outro discurso de encorajamento, um dos carros de batalha saiu em disparada em direção aos muros de Tróia: Aquiles.

Estava tão rápido que pensaram que fosse se chocar contra a amurada. Mas, demonstrando grande habilidade, puxou as rédeas de seus dois cavalos e virou o carro, mantendo controle até parar. Alguns arqueiros dispararam flechas contra ele, mas todas ou erraram seu alvo, ou acertaram seu escudo. Atiraram mais algumas vezes, sem sucesso, e então, ao que parecia, receberam ordem de suspender os disparos.       

Aquiles, então, jogou seu escudo para dentro do carro. Depois, foi a vez do elmo. Ficou encarando, desafiante, a multidão formada no alto. Passou os olhos até divisar um homem com uma armadura que lhe era bastante familiar. Sua armadura! Apontou em sua direção e cuspiu as palavras:

 

-         Você! Heitor, o maldito! Eu sou Aquiles, protegido de Ares, o Deus da Guerra! Aqui, perante sua família e seus súditos eu irei matá-lo e dilacerar seu corpo, para que nem mesmo os mortos nas profundezas do Hades consigam reconhecê-lo! Irei me satisfazer com a sua mulher, Andrômaca, a qual tomarei como minha concubina e escrava. Acabarei com a sua prole para que seu nome não perpetue! Desça, cão troiano, e encontre minha fúria!

 

A resposta ao desafio do campeão acaio foi imediata. Os portões rangeram, um som irritante, estalado. Descendo do alto da rampa de acesso, veio Heitor, o príncipe troiano. Trajava a armadura completa do próprio Aquiles, conquistada como troféu após ter matado Pátroclo. A vestimenta estava impecável, salvo o rasgo na lateral, onde a espada de Heitor encontrara a carne de seu oponente.

 

-         Acabarei com você assim como fiz com o outro porco acaio, cão! Faço esse juramento perante meu pai, Príamo, senhor de Tróia!– vociferou Heitor, com sua foz ressoando pelo elmo.

 

Os soldados acaios se acomodaram e começaram a gritar o nome de seu campeão. Os troianos faziam o mesmo do alto de sua cidade fortificada. Adônis viu que alguns guerreiros faziam apostas sobre quem seria o vitorioso. Mas para ele não havia dúvidas: Aquiles estava possesso e a ira de um deus é impossível de ser impedida. Tornou a fazer um gesto de devoção, levando os olhos ao céu. Um trovão...

Heitor avançava velozmente, açoitando o dorso dos cavalos pardos, carregando a lança. Aquiles vinha do lado oposto, com um dardo preparado para ser lançado. Calcularam a distância e lançaram os projéteis quase ao mesmo tempo. O escudo de Heitor estava bem posicionado e repeliu o ataque. Em contrapartida, sua arma passou rente entre o pescoço e o ombro de Aquiles, tirando um pouco de sangue e uma porção do cabelo. O campeão acaio colocou a mão no pescoço e trincou os dentes, fazendo a gengiva sangrar. Os olhos estavam inflamados de raiva. Tornaram a dar meia volta com os carros e voltaram a investir furiosamente um contra o outro. Aquiles pegara outro dardo e dessa vez o arremessara de mais longe, não esperando a aproximação. Heitor não esperava isso e foi pego de surpresa, antes que pudesse alcançar um de seus outros dardos. A arma perfurou a frente de seu carro de combate, tamanha foi a força utilizada no arremesso, e acabou atravessando a madeira e lhe varando a coxa direita. A dor quase o fez perder controle dos cavalos, mas se recuperou e conseguiu evitar que tombasse. Fez um esforço e retirou a lâmina que trespassava sua perna. Vendo que acertara o oponente, Aquiles desembainhou a kopis e emparelhou-se com o outro carro. Heitor afastou-se para a lateral e se defendeu com a mesma lança que o tinha atingido, desviando o golpe. Aquiles tornou a golpear, mas levantara seu braço alto demais, fazendo com que Heitor aproveitasse para atacar. Primeiramente visava perfurar a axila, mas o ferimento em sua perna prejudicava seus reflexos e retardava seus movimentos. Acabou atingindo a lâmina na omoplata do acaio, mas sem partir o osso. Conseguira, pelo menos, tempo para pegar a espada. Aquiles recuou, grunhindo. Aos poucos os gritos de exaltação de ambos os lados foram sendo calados, sendo ouvido apenas o chocar de metal. Nem mesmo o som das fortes ondas do mar era percebido. Os corcéis pareciam dominados pela fúria de seus donos e mordiam-se mutuamente, relinchando e arfando, como se fossem capazes de gritar ofensas para o outro. Era uma luta que nem mesmo os Deuses ousariam interferir.

Heitor estava ficando fraco, tanto era o sangue que estava perdendo. Aquiles também possuía muitos cortes, mas todos pareciam superficiais ou não o abalavam. O troiano tentou sair de seu carro de combate, para poder ter mais espaço para lutar, mas Aquiles, percebendo isso, apoiou os pés na beirada do veículo e saltou sobre ele. Os dois acabaram caindo na areia revolvida. Aquiles levantou primeiro, mantendo-se logo em seguida em guarda. Heitor pressionou o ferimento na perna e ergueu-se com dificuldade. Aquiles o circundava, como um predador acuando sua presa. Heitor arriscou-se em um ataque, pensando em pegar Aquiles desprevenido, mas o príncipe acaio desviou a tempo e ainda conseguiu contra atacar. Mas o golpe acertara apenas as correias da armadura do troiano, partindo-as. Heitor recuou uns passos e terminou a desatar a outra parte da armadura, aliviando assim o peso. Retrocedeu até sentir as águas frias do mar bater-lhe nos pés. Aquiles aproximava-se devagar, analisando qualquer ação que seu inimigo pudesse cometer. Sem ter mais terreno para recuar, Heitor apenas esperou...

Aquiles cerrou os olhos e correu novamente para cima do troiano. Com um rápido movimento, tirou-o de balanço e girou a espada sobre a cabeça. O potente golpe acertou o elmo de Heitor, partindo o adorno de crina de cavalo, abrindo uma fenda e atingindo o osso do crânio. Logo o sangue começou a lavar a face do príncipe troiano. Convulsionou um pouco e começou a cambalear. Aquiles o pegou pelo pescoço e cuspiu em seu rosto. Empurrou-o e então desferiu o último golpe, cortando-o do pescoço até a pélvis. Com um uivo, Aquiles anunciou seu triunfo.

Aos poucos a platéia acaia, ainda atordoada com o combate, começou a clamar o nome de Aquiles. Adônis se juntou às vozes, mas não tão entusiasmado. Tróia havia perdido seu maior herói, mas isso não significava que fossem se render. Pelo contrário, talvez o martírio de Heitor fosse despertar um sentimento muito maior. Olhou para Agamenon e Menelau e seus semblantes também pareciam expressar o mesmo pensamento.

Os portões da cidade tornaram-se a abrir e os troianos começaram a sair em formação. Estavam com o semblante funesto e não entoavam qualquer cântico. Vinham reclamar o corpo de Heitor.

Mas Aquiles apenas os ignorou. Levou o corpo até um carro de combate próximo e amarrou as pernas na traseira. Venham pegar vocês mesmos, bastardos! Disse Aquiles, calmamente e sem alterar a voz. Chicoteou os cavalos e começou a arrastar o corpo de Heitor.

Furiosos, os troianos investiram contra o carro de Aquiles, mas seus mirmídones logo fizeram uma posição de defesa com os escudos. Agamenon gritou para seus oficiais entrarem em linha com os guerreiros, que obedeceram de pronto.

Mesmo em grande desvantagem numérica, o pequeno bando que viera recuperar o corpo de Heitor não recuou para a salvaguarda da amurada. Ao contrário, atacou a bem defendida posição acaia. Adônis, que estava nas primeiras linhas, foi atacado por um garoto de não mais de quatorze anos. Mas a aparente pouca idade não o fazia menos perigoso, pois matara dois homens antes de chegar até ali. Não tinha outra alternativa a não ser acertar o rapaz com a lança. O corpo do jovem, ao ser perfurado no peito pela lança, vergou-a, partindo-a ao meio. Adônis retirou a espada que estava às costas e voltou a golpear outro atacante, acertando-o no estômago, fazendo com que caísse sobre os joelhos.

Encorajados, mais guerreiros troianos vinham travar combate. Centenas, milhares começaram sair pelos grandes portões. As filas foram aos poucos se rompendo e a luta ficava de modo desordenado.

Adônis sentiu algo lhe fisgar o ombro. Por reflexo, virou o escudo que acabou recebendo o impacto seguinte. Antes que pudesse revidar o ataque hesitou por um momento ao contemplar seu oponente: Uma jovem de longos cabelos cor de cobre e olhar faiscante segurava firmemente uma lança manchada de sangue. O corpo estava quase nu, parcialmente coberto por uma pequena túnica de algodão cru e não possuía armadura, salvo a proteção de bronze que lhe cobria os seios.Não era muito alta e ainda conservava um rosto de menina. Mas com certeza não uma menina comum. Adônis já havia escutado rumores sobre uma tribo de mulheres guerreiras. Era uma amazona.

O acaio teve apenas tempo de levantar seu escudo à altura do rosto, evitando que o novo ataque da jovem lhe atingisse os olhos, uma das poucas partes vulneráveis do elmo. A lança foi arremessada, mas resvalou no escudo.O guerreiro recuou e posicionou-se de forma defensiva. A amazona rosnou por ter errado o alvo e perdido sua arma principal. Tratou de sacar uma adaga que estava atada à sua perna e tornou a atacar. Adônis esperou até o momento certo, quando ela estivesse próxima o suficiente, e então a golpeou com o escudo, derrubando-a. A jovem não tentou se levantar. Estava ofegante e parecia muito cansada. De seu corpo bronzeado, surgiam hematomas e de sua boca, um filete de sangue. Encarava Adônis desafiadoramente, esperando o golpe final. Mas isso não aconteceu. O acaio baixou o escudo e apontou, com a lança, uma direção, para longe dos combates. Logo sua expressão de cansaço deu lugar ao ódio. O rosto de menina começava a se contorcer e a ser lavado por lágrimas. A amazona gritava em uma língua desconhecida e golpeava a areia com os punhos fechados. Depois de um breve intervalo, Adônis compreendeu. Ele a tinha desonrado, impedindo-a de morrer em batalha.

Mas esse pequeno espaço de tempo foi o suficiente para a jovem guerreira aproveitar-se de sua distração e golpeá-lo, com os pés, bem acima do joelho. Adônis ainda tentou manter-se erguido, mas a dor e o peso do armamento eram insuportáveis, fazendo com que caísse de costas na areia quente. Sentiu a jovem pular em cima de seu corpo, frustrando qualquer tentativa de levantar-se. De súbito, teve o elmo sufocante arrancado de forma brusca. Podia sentir, agora, uma refrescante e prazerosa brisa envolver-lhe o rosto. Fez menção em se mexer, mas abandonou a idéia ao perceber uma afiada ponta metálica pressionando, levemente, seu pescoço. Foi virando os olhos, bem devagar, até encontrar os da jovem guerreira. Toda a fúria e ódio pareciam ter sido deixados para trás. A menina apenas o encarava, de forma curiosa e não ameaçadora, medindo-o, analisando-o, fazendo com que a pressão da lâmina fosse diminuindo aos poucos. Adônis podia sentir o adocicado cheiro de ervas, misturado ao suor da jovem. O cabelo, agora quase todo jogado para frente, revolto, dava a impressão de selvageria, entrando em contraste com as feições delicadas e quase infantis. O acaio imaginou que o motivo de sua hesitação é que ela nunca tivesse visto o rosto de alguém que estivesse prestes a matar. Ela só conhecia aquela face ameaçadora de metal frio e sem vida, incapaz de demonstrar emoções, privada de compaixão ou remorso. Uma face de dor, destruição e morte.

Nesse momento, uma enorme sombra pareceu cobrir o sol logo acima de sua cabeça e fortes mãos agarraram os cabelos da menina amazona, puxando-a violentamente para trás. Adônis logo reconheceu o elmo com a grande crina avermelhada e o escudo com a face de um leão: Ájax, o gigante de ferro. A jovem tentava se debater e espernear inutilmente fazendo com que o gigante risse de seus esforços. Acabou por fim erguendo-a pelo pescoço e arremessou-a para um grupo de guerreiros que estavam ali próximos. Saltaram todos para cima da menina, como lobos famintos, rasgando o que sobrara de suas vestes. Como o líder daquela alcatéia, Ájax fez apenas um gesto com o escudo e todos pararam de imediato. Tornou a olhar para Adônis:

 

-         Vem, acaio. Toma a rameira primeiro. A honra é tua!- Ressoou a gutural voz de comando do gigante.

 

Adônis levantou-se e caminhou até a direção da amazona, que estava imobilizada no chão, pelos outros acaios. Ela não mais tentava se debater ou gritar. De sua face sequer uma lágrima corria. Ela olhava para o céu, como que conformada com o seu cruel destino. Adônis tomou rapidamente uma das lanças dos guerreiros à sua volta. Desta vez, sem hesitar, golpeou fundo o peito da jovem amazona. Seguido de um suspiro final de seu rosto jovial e delicado, surgiu o esboço de um pequeno sorriso. Protestos começaram a sua volta, bem como xingamentos, mas Adônis ignorou-os. Aproximou-se, então, de Ájax:

 

-         A honra é dela!

 

O guerreio acaio tratou de recolocar seu elmo, a face de metal da destruição. De escudo em mãos e de lança em riste, juntou-se aos outros incógnitos mensageiros da morte.