Negócios e acordos

Capítulo 1

 

Manhã, 2 de Tertius

A tempestade cedeu lugar a uma suave porém constante chuva fina e fria. O inverno estava indo embora no konigriech de Wische, o derreter da neve revelando as cicatrizes do dano que a província agüentou e o sofrimento imposto a seu povo pela Guerra da Cruz.

Quatro pares de cascos batiam na estrada coberta de lama que cruzava a cidade até o Castelo Wische. Os cavaleiros vestiam mantos negros que não conseguiam esconder o drachenshuppe por debaixo. Cavalgavam em silêncio e aparentemente sem prestar atenção à sua volta, mas na verdade seu silêncio era sua forma de lamentar pela terra, flagelada pela fome e corrompida pela doença. Eles viam os waisen sair de seu caminho aos tropeções, e já a distância apareciam as torres de granito do Castelo Wische.

Em quinze minutos chegaram aos portões. O guarda em serviço, vestindo um uniforme marrom e uma panzerhand de ferro ligeiramente enferrujada, levantou sua alabarda e começou a vociferar um alerta, enttão percebeu o brilho do dracheneisen sob os mantos e procedeu a abertura do portão. Eram os convidados do eisenfurst.

O portão os levou através das muralhas de 7 metros de altura e mais de um metro e meio de espessura. Um caminho pavimentado levou-os através do pequeno pátio até o prédio principal. Os dois viajantes removeram os capuzes e desmontaram em frente à porta. Um servo levou seus cavalos ao estábulo enquanto eles eram momentaneamente assolados por memórias da infância, brincando com primos neste mesmo pátio enquanto seus pais lutavam batalhas sangrentas a poucos quilômetros de distância. Hoje não havia desejo de brincar, as batalhas se encerraram dois anos atrás, e seus primos, a mais tempo ainda mortos, junto com sua tia e sua mãe.

No topo da escadaria que levava à porta eles reconheceram o capitão da guarda, braço direito de seu tio, hauptmann Johann Wiederkher. Um homem barbado com seus quarenta e poucos anos, com cabelos castanhos curtos que davam lugar a uma proeminente calvície, Wiederkher vestia o uniforme marrom escuro e um grande sorriso.

“Olá rapazes, que Theus abençoe meus olhos por vê-los de novo!” disse Wiederkher abraçando os recém-chegados.

“Eu nunca conseguiria distinguir entre vocês dois se não lembrasse que você é canhoto, Dugal. E você, Jürgen, como que deixaram você crescer esse cabelo na academia?”

“Também é bom ver você após todos esses anos, hauptmann. A viagem de Gottkirshen até aqui foi dura, mas suportável graças ao conforto de saber que estávamos indo a um lugar que podemos chamar de lar. Diga, onde está nosso tio?”

“Lorde Reinhard está caçando no campo. Ele supôs que vocês chegariam só à noite, e planejou seu retorno para esta tarde. Mas vejo que herdaram a pontualidade de seu pai. Venham, entrem, os servos os levarão a seus aposentos e lhes trarão roupas limpas.”

“Muito bem. Nos vemos para o almoço?”

“Claro. Temos oito anos de conversa para por em dia.”

 

Final da tarde, 2 de Tertius

“Jürgen?” disse Dugal parado de frente aos aposentos de seu irmão.

“O que?” respondeu Jürgen, com a voz abafada através da espessa porta de carvalho.

“Abra. A comitiva de nosso tio foi avistada e chegará aqui em minutos. Vamos recebê-lo no salão principal.”

“Só um segundo...”

Os irmãos desceram as escadas apressadamente. Vestiam veludo negro e lã branca, sem armadura mas com as espadas de dracheneisen embainhadas à cintura. As escadas terminavam no salão, um aposento enorme com uma lareira gigantesca e uma mesa de jantar que poderia sentar 30 pessoas, com tapeçarias e troféus de caça pendurados nas paredes. As escadas entravam no salão pelo leste, e uma porta deste mesmo lado levava à cozinha; ao sul havia uma saída para os jardins internos, e a oeste um corredor que levava a outros cômodos, inclusive àquele onde estavam as armaduras e armas ancestrais dos Wische, à mostra junto com retratos dos antigos eisenfursten e suas famílias. Ao norte estava a porta principal, e foi desta porta que emergiu uma figura alta, usando um drachenshuppe complementado por peças de couro negro curtido e uma capa vermelha de veludo. Tirou seu elmo e sorriu, reconhecendo seus sobrinhos:

“Jürgen! Dugal! Que visão para este velhos olhos é ver os filhos do meu irmão fortes e saudáveis! Meu orgulho por vocês é tão grande quanto o de seu pai, e é um grande prazer tê-los em minha casa!” Ele disse enquanto andava na direção deles, abraçando-os com uma força que em outros países seria considerada um ataque.

“É bom estar aqui, tio Reinhard.”

“Sim, também estamos orgulhosos de você considerar nossa ajuda digna.”

“Mas é claro que sua ajuda é digna. Desde que os meus próprios... filhos... morreram.... Seu pai e vocês são os próximos na linha de sucessão. Como são gêmeos, estão destinados a governar este konigriech juntos, o que pode ser dez vezes mais difícil do que governar sozinho. É meu dever, como governante e como parente, assegurar que estejam preparados para o fardo. Que Theus me faça estar errado, mas sei que nem eu nem seu pai viveremos muitos anos mais. Provavelmente na próxima década vocês se verão como líderes deste konigriech, e vocês precisam cuidar bem dele antes que algum de nossos ambiciosos nobres menores ou outros eisenfursten como Fauner Posen resolvam tomá-lo.”

“Eles não têm direito nenhum à isso!”

“Sem o Imperador, quem irá impedi-los? Posen, em particular, poderia tomar Eisen inteira exceto o domínio de Sieger, e ninguém teria como resistir. Vocês precisam ser fortes  para mantê-la no seu devido lugar, e para trazer prosperidade ao nosso povo.

Isso nos leva a principal razão de tê-los chamado aqui. Uma oportunidade se apresentou algumas semanas atrás. Vocês bem sabem que a economia de nosso konigriech está em frangalhos. Temos muitos waisen, nossas minas estão quase esgotadas e não teremos uma colheita adequada por pelo menos dois anos. Temos pouco dinheiro nos cofres e nossa única solução seria um empréstimo dos Vendel para procurar novos veios e reconstruir nossas plantações. No entanto, um marquês de Montaigne e um príncipe mercante de Vodacce ambos demonstraram interesse em contratar nossas exportações de minério de ferro a um preço bastante razoável. Qualquer uma das duas ofertas é substancial por si só, mas havendo concorrência entre os dois podemos conseguir um acordo muito mais vantajoso, conforme eles sobrepõe suas ofertas tentando superar o outro. Aguardo emissários de ambos para esta semana, ainda.

Espero ouvir suas opiniões para julgar qual é a melhor oferta. Os Montaigne a princípio oferecem muito mais dinheiro, mas em guilders, o que nos coloca na mão dos Vendel. Já os Vodacce oferecem ouro e mercadorias do Império da Lua Crescente, bem como grãos e outros itens para suplementar nossa necessidade por comida.”

“E estes emissários já estão a caminho?”

“Supostamente. Chamei vocês tão logo soube do interesse deles.”

“Creio que não há muito o que pensar. A oferta de Vodacce é melhor!”

“Sempre impulsivo, não Dugal? Você aprenderá que, negociando, podemos fazer com que os Montaigne ofereçam uma soma capaz de suplantar a oferta de Vodacce em muito. Aí poderíamos utilizar esse dinheiro para comprar o que os Vodacce nos oferecem dos Castille, por exemplo. Isso é claro, se os Montaigne estiverem dispostos a gastar tanto. E, além disso, não se pode esquecer que o que um Vodacce oferece é muito diferente do que o que um Vodacce dá.”

“Mas tio, você disse que as minas estão quase esgotadas. Se não conseguirmos encontrar novos veios, como honraremos o acordo?”

“Há! Se eu soubesse essa resposta, Jürgen, não precisaria pedir conselhos.”

 

Mais tarde, naquela noite...

Após o jantar, o eisenfurst começou a entreter seus sobrinhos com uma série de contos sobre as aventuras dele e de seu irmão. Contos dos jovens Reinhard e Herman, aventureiros em busca de romance, sem perceber a maré de guerra que aumentava no horizonte. Hauptmann Wiederkher pensou duas vezes antes de interromper, pois parecia que era a primeira vez que Reinhard se divertia desde que sua família morreu três anos antes.

“Meu Lorde?”

“...e então, achando que fosse o pai dela, pulei da cama e girei o braço para me proteger de um provável ataque, enquanto buscava a espada. E o gato dela, que era o dono das patas gordas que encostaram em minha mão e me acordaram, foi jogado pela janela... HAHAHA... o que é, hauptmann?”

“Há uma carruagem nos portões, meu Lorde. O cocheiro afirma que traz os convidados de Montaigne.”

“Deixe-os entrar. Escolte-os para esta sala tão logo quanto possível.”

 

Enquanto isso, nos portões...

“Humpf! Até que enfim! Estava ficando velho aqui, esperando estes bárbaros abrirem o portão!”

“Algum dia você vai parar de se lamentar, cantorzinho?” disse o mosqueteiro raivosamente, aborrecido com a constante onda de reclamações que o Vodacce proferia desde que deixaram Montaigne uma semana antes. Os quatro homens na carruagem estavam cansados da longa (e entediante) viagem que os trouxe de Aur. O pouco de paciência que Arnoud tinha foi deixada para trás quando Luca começou a dar seus comentários - não-solicitados - sobre o clima, a carruagem, a estrada, a comida...

“Pararei quando estiver confortável, o que duvido muito que ficarei neste lugar horrível!”

“Você subestima a hospitalidade de Eisen, mon ami. Eu duvido que você será mais mal tratado aqui do que seria em Montaigne. Na verdade, pelo menos aqui pode-se esperar muito mais sinceridade nas palavras dos nobres.” Disse Maurice. Durante a viagem os dois artistas puderam conhecer melhor seus acompanhantes. Maurice se provou um homem culto e cordial, com grande talento para as palavras. Arnoud não era muito amigável, mas Gerard pensava que era apenas a antipatia pelo eunuco que o fazia parecer assim.

A carruagem passou pelo portão e parou em frente ao lance de escadas. Alguns momentos se passaram antes que o cocheiro abrisse a porta e os passageiros pudessem ver o homem meio calvo em roupas marrons que os esperava. Maurice, o último a desembarcar, reconheceu o homem, e o cumprimentou em um Eisen perfeito:

“Hah! Hauptmann Wiederkher! Demorou, mas voltei com notícias de meu senhor para o seu. Estará ele acordado ou chegamos muito tarde?”

“Seja bem-vindo, monsieur Larue. Meu mestre está acordado e ciente de sua chegada. Ele os aguarda no salão principal.” Apertaram as mãos e se dirigiram para a porta aberta. Maurice gesticulou para que os outros três o seguissem.

“O que diabos eles falaram?” susurrou Luca para Gerard em Vodacce.

“Você não fala Eisen?”

“Por que deveria?”

“Oh! Meus sais!”

 

Instantes depois, no salão principal

“Bem-vindo de novo ao meu humilde castelo, monsieur Larue!” cumprimentou o eisenfurst em um Montaigne bastante arrastado. Dois homens jovens, altos e loiros, estavam atrás dele.

“Por favor, por favor,” respondeu Maurice em Eisen, “esta é a sua casa. Eu quem devo falar sua língua. Aceito sua hospitalidade e peço que me perdoe pela hora tardia em que chego. Eu deveria ter buscado uma estalagem e vindo ter consigo pela manhã. Desculpe meu lapso de etiqueta.”

“Não há o que se desculpar, meus portões estão sempre abertos aos amigos. Não diga mais nada antes que eu ordene que uma refeição seja servida a você e sua comitiva.”

“Hum? Ah sim, estes são meus amigos Gerard e Luca. E Arnoud ali é nosso guarda-costas.”

“Eu recebo a todos vocês. Vamos comer, meus sobrinhos, Dugal e Jürgen, irão nos acompanhar. Vocês devem estar famintos, e apresentações formais serão mais apropriadas depois que a fome estiver saciada.”

O cantor Vodacce esticou o pescoço em direção ao seu companheiro compositor e sussurrou: “O que ele disse?”

“Nós comeremos agora”

“O que?”

“Comida típica de Eisen”

“Blergh!”

 

Mais tarde...

Demorou quase uma hora para que todos os pratos de weisben, wurst, pão, cebolas e chucrute fossem esvaziados. Falaram amenidades durante o jantar, e todas as tentativas de Maurice de falar de negócios foram sumariamente rejeitadas pelo eisenfurst.

“Você viu aquele Vodacce, Jürgen?” susurrou Dugal em Eisen Real, a língua nobre da nação.

“O que?”

“Ele é afeminado! Como o tio Reinhard deixa esse tipo de gente entrar no castelo?”

“Eles estão falando de mim, eu sei!” sussurrou Luca para Gerard, apontando para os dois irmãos Eisen com os olhos.

“E daí? Você não está entendendo, que importa? QUEM se importa?”

“Eu me importo! Eles são selvagens! Viemos para cá apresentar música para uma tribo de animais que não a diferenciariam do coaxar de um sapo! Isso é mau, vamos ter problemas com isso, eu posso sentir!”

Enquanto isso, Maurice tentava avançar mais uma vez.

“Sobre a proposta de meu senhor, herr Wische...”

“Basta, Maurice. Estou impressionado com o quanto você desaprendeu de boas maneiras nessas duas semanas desde que nos encontramos pela primeira vez. Já lhe disse que não ouvirei ofertas esta noite. Na verdade, não ouvirei nenhuma oferta até que o emissário de Vodacce chegue aqui.”

“Emissário? Vodacce?”

“Sim. O príncipe Bernouilli também parece bastante interessado em um acordo. Creio que deveria se preparar para uma pequena disputa se planeja voltar ao seu marquês com o tratado assinado.”

“Bem...”

“Até que o Vodacce chegue, ainda esta semana, vocês são meus convidados.”

“Como queira, milorde. De fato, isso dará o tempo necessário para que Gerard termine sua peça.”

“Peça?”

“Sim, milorde,” disse Gerard, “estou compondo uma peça em honra a São Gregor, e eu e meu parceiro Luca adoraríamos apresentá-la no fim da semana. Eu tocarei cravo e Luca cantará.”

“Eu ouvi direito?” sussurrou Jürgen para Dugal, “a menininha ali ira cantar em homenagem a Gregorskorn?”

 

Uma hora depois...

“As aias prepararam quartos para vocês na ala direita, escada acima” disse hauptmann Wiederkher

“Se for possível, herr Wiederkher, gostaria de ficar no alojamento dos guardas.” Disse o mosqueteiro Arnoud em um Eisen hesitante.

“Sem problemas. Tudo bem com os outros? Não? Então desejo-os uma boa noite.”

Os três visitantes subiram as escadarias e viraram à direita. Andaram alguns metros antes de virar à direita novamente chegando a um corredor longo, com dez portas ao lado esquerdo. Quatro delas estavam abertas.

“Creio que uma delas estava reservada para o bom Arnoud. Escolham seus quartos, eu ficarei com o primeiro. Boa noite para vocês.”

“Eu pego o último. Luca, durma bem, pois amanhã acordaremos cedo para ensaiar.”

“Não será difícil. Não tem nada aqui para me manter acordado.”

 

Manhã, 3 de Tertius

“As estradas estão bloqueadas pela chuva, senhor. Temo que teremos que ficar aqui até o tempo melhorar.

“Eu não quero ficar em Frieburg! Temos que chegar em Wische amanhã!”

“Mas senhor, mesmo com tempo bom seriam dois dias de viagem. Com as estradas cobertas de lama como estão, não chegaremos até o fim da semana. Além dis...” o cocheiro parou no meio da frase olhando fixamente atrás de Giordano. Este se virou e percebeu que sua prima acabara de entrar no quarto. Quando se virou de novo, o cocheiro já havia saído pela outra porta.

“Seu pai deveria contratar homens menos supersticiosos, Nano. Estou ficando irritada com isso.”

“Não posso culpá-lo. Quando éramos crianças eu sofri o inferno em suas mãos de bruxa; sempre me fazendo entrar em brigas com meninos maiores ou com meus irmãos. E não me chame de Nano!”

“Oh, não quero que se lembre assim de mim. Eu gostava muito de você naquela época. Sempre me defendendo. Veja, eu não tinha o conhecimento de Sorte naquela época. Você lutava por mim de livre e espontânea vontade, ou por puro ciúme” ela se aproximou e beijou-o suavemente no rosto, “desnecessário, você sabe que meu coração sempre foi seu, Nano.”

“Pareço tão tolo assim para acreditar nisso?" disse ele, sem muita certeza na voz. "Bem, basta. O que esteve fazendo a noite toda? Seus olhos me dizem que você não dormiu.”

“Tentei ler as cartas,” um arrepio passou pela espinha de Giordano quando ela disse isso, “mas desde que saímos de casa não consigo me sentir confortável com o baralho mesmo depois de horas embaralhando.”

“E isso é importante?”

“Claro que é, querido. Se você não se sente bem com as cartas, a leitura não é precisa.”

“Bem, parece que suas cartas estão tão cinzentas quanto o céu destas terras,” ele disse virando-se para a janela, abraçando sua prima pelos ombros, “e é uma pena que elas não dirão quando que essa tempestade irá passar.”

“A tempestade é como as cartas. Pode demorar várias noites, mas você vai acabar se acostumando com ela.”

 

Em outro lugar...

Luca não podia acreditar. O café da manhã dos bárbaros consistia exatamente da mesma... coisa... que ele teve que fingir comer na noite anterior. Salsichas, cebolas, carne de porco, pão, manteiga e aquela salada fétida horrorosa que lhe dava náuseas. Sentou-se com desgosto aparente em sua face.

“Não gosta de nossa comida, Vodacce?” rosnou Jürgen.

“O que? Ele está falando comigo, Gerard?” o Vodacce perguntava em suas língua natal e em notas agudas.

“Só um minuto, Luca.” Então, em Eisen, “Temo que meu amigo Luca não fale sua língua, senhor.”

“Mas você fala muito bem,” disse Dugal, entrando na conversa, “onde aprendeu?”

“Minha avó era Eisen. Ela ensinou meu pai, que me ensinou.”

“E por isso você se acha digno de fazer qualquer coisa em nome de Gregorskorn?” Perguntou Jürgen encarando o cantor.

“Bem, eu gostaria de tentar. Falando nisso, perguntei ao seu tio sobre um lugar onde poderíamos ensaiar, e ele recomendou uma pequena igreja abandonada que existe na cidade.”

“Pode ser um bom lugar. Não vou lá há anos, mas lembro-me que era um lugar não muito grande, com uma boa acústica.”

“Se vocês pudessem nos guiar até lá, eu ficaria muito honrado de tê-los assistindo ao ensaio, e certificar-se que São Gregor será devidamente respeitado.”

“Vamos, Jürgen?”

“Por mim tudo bem.”

“Onde está nosso tio?”

“Parece que ele e Maurice saíram juntos para uma cavalgada pelo campo.”

“Então iremos tão logo estejam prontos. Com licença.” Disse Dugal, levantando com seu irmão e saindo da mesa.

“Do que vocês estavam falando?” o ansioso cantor inquiria.

“Eu os convidei para assistir o ensaio, algum problema?”

“O que foi que eu fiz para você dedicar cada momento seu a tornar a minha vida mais infeliz?

 

Uma hora mais tarde...

A igreja era feita de tijolos nus e ficava em uma praça bem ampla próxima ao centro da cidade. Durante a guerra ela havia sido atacada por Objecionistas e saqueada. Após o término das hostilidades a igreja foi abandonada, já que a catedral central podia atender as necessidades do povo que ainda se importava em rezar. As paredes não escondiam sinais de tiros de canhão, e algumas das janelas tinham tábuas ao invés dos vitrais pintados que outras mostravam. Os cinco cavaleiros pararam em frente e amarraram seus cavalos em um poste. Arnoud tirou seu chapéu e olhou para cima, onde estava a cruz do Profeta retorcida e enferrujada. Dugal tirou uma chave grande de debaixo de seu manto e subiu o pequeno lance de escadas até a porta. A chave girou e a fechadura reclamou de ser usada após tantos meses sem ser perturbada. As portas se abriram com o barulho característico que todos os cinco esperavam, e uma lufada de ar trouxe uma nuvem de poeira de dentro da igreja que iria receber visitantes pela primeira vez em mais de um ano.

Gerard carregava com dificuldade seu cravo, e entrou logo depois dos irmãos Eisen, indo direto para a nave. Colocou o instrumento sobre uma mesa propícia e abriu uma pasta de couro com dezenas de folhas de papel, procurando por sua mais nova obra.

Luca tirou seu manto e casaco, e começou a aquecer a garganta com uma série de exercícios desenvolvida ao longo de anos de estudo e prática.

“Aaaaaaaaaaaaaaaahhhheeeeeeeeeeeeeeehhiiiiiiiiiiiiiiiiiiihhooooooooooooooohhhhuuuuuuuuuuuuuu”

Dugal e Jürgen se sentaram na segunda fileira, enquanto Arnoud preferiu ficar na última. Gerard logo conseguiu colocar ordem em seus papéis e começou a pressionar as teclas de seu instrumento, notas que Luca igualava com sua voz. Começou a trabalhar na escala para cima e para baixo, sempre sendo perfeitamente acompanhado por Luca.

Os irmãos pareciam intocados pela demonstração de habilidade musical do cantor. Criados em uma nação em guerra e educados em uma academia militar, seu primeiro contato com a música erudita era influenciada pela opinião que tinham dos Montaigne em geral e daquele cantor Vodacce em particular, o que os impedia de apreciar a beleza daquela apresentação.

Quando Gerard sentiu que Luca estava pronto, levantou-se, curvou-se para a “platéia” e ordenou novamente seus papéis. Sentou-se de novo, deu um tom e encontrou novamente a voz de Luca. Então começou a tocar, com alma e emoção, sua peça. A melodia era maravilhosa, e Dugal e Jürgen estavam começando a realmente apreciar o que ouviam.

De repente, por um ato do destino, na hora que Luca ia começar a cantar Gerard pressionou uma tecla que bateu em uma corda provavelmente enfraquecida, que arrebentou com um som alto e desagradável. Momentaneamente assustado, Luca perdeu a concentração e deixou o tom escapar, fazendo com que sua normalmente bela voz se tornasse agudíssima e insuportável. Gerard parou de tocar e olhou para Luca, atônito.

O jovem Eisen de longo cabelos louros já estava de pé, com os olhos em fúria: “Se é isso que pensa que algo em honra a Gregorskorn é, você é mais corajoso do que pensei, Montaigne. Meu tio provavelmente arrancaria sua pele se isso tivesse acontecido na frente dele. Não concorda, Dugal?”

“Claro que sim, irmão. É melhor vocês ensaiarem bastante, falta muito antes de poder chamar esta obra de ‘aceitável’”

“M-mas... não é culpa minha! A corda, ela, ela...”

Os irmãos se levantaram e foram em direção à porta, não prestando atenção às explicações de Gerard. No caminho, Arnoud sorriu para eles e balançou a cabeça, visivelmente satisfeito.

“Não é minha culpa...” choramingava Gerard Denis.

“O que eles disseram, Gerard? Eles estão muito bravos?”

 

Lá fora...

Os irmãos saíram da igreja e foram cumprimentados por um caloroso raio de sol. Talvez a chuva fosse dar uma trégua por um dia ou dois, e deixar as pessoas pelo menos secar suas roupas. Ambos desceram as escadas e foram até os cavalos, desamarrando os arreios quando

<splurt!!>

“O que diabos...” disse Dugal.

Lama pingava do seu ombro e manchava seu manto. Seu irmão se virou para ver o que aconteceu e graças a esse movimento se esquivou de uma segunda bola de lama, mirada para sua cabeça.

No meio da praça estava um mendigo. As pessoas se afastavam, sentindo o cheiro de problemas no ar. Ele vestia uma túnica de linho suja e estava descalço no pavimento coberto de lama. Suas mãos estavam cheias de lama também, e seus braços e rosto tinham sangue seco e cortes novos sobre cicatrizes antigas. Berrava a plenos pulmões.

“Bastardos! Nosso país não precisa de mais palhaços arrogantes e brutos em armaduras brilhantes, sem se importar com o povo faminto enquanto festeja com estrangeiros! Vão embora! Levem suas espadas e manoplas de volta ao seu castelo, e deixem as pessoas viverem suas vidas miseráveis em paz! Dúzias já morrem todo dia de fome e doença sem precisar que vocês nos abatam como gado!” O homem se abaixou de novo para pegar mais lama enquanto os irmãos andavam na sua direção.

“Entendo sua situação, homem. Nossa nação sofreu muito com o conflito interno nestes trinta anos. Theus sabe que não precisamos de nem mais um dia. Os alden estão tentando trazer a prosperidade de volta a vida das pessoas, e eliminar esta pobreza em Wische...” disse Jürgen amigavelmente, colocando sua mão direita no ombro do homem e tentando confortá-lo.

“Eliminar a pobreza matando os pobres, isso é o que vocês fazem! Aaarghhhhh!” O homem puxou uma pequena adaga de sua túnica e, berrando, tentou acertar Jürgen debaixo do braço, onde não havia proteção da armadura. Mas Dugal foi mais rápido que o waisen desnutrido, e desferiu um poderoso soco com seu punho envolto em dracheneisen. O golpe atingiu o homem na boca, sangue e pedaços de dente voando pelo ar enquanto caia no solo inconsciente e ainda segurando sua lâmina.

“É assim que agradece nossa preocupação por vocês?! Essa é a recompensa que temos por dias e noites tentando encontrar um modo de restaurar a honra e glória deste konigriech?! Mereceu o que teve, suíno!” Gritou Dugal sobre o corpo desmaiado do pretensioso atacante, meio que dizendo isso também para a multidão aglomerada na praça.

“Dugal, está fora de si? É exatamente esse tipo de reação que trás o que há de pior nas pessoas. Vamos para o castelo.”

“Esse homem deveria ser enforcado! Se deixarmos coisas assim acontecerem freqüentemente, os outros eisenfurst vão nos atacar pela nossa fraqueza! Aí sim as pessoas vão sofrer. São agitadores com esse que fazem pessoas boas sofrerem quando atraem a ira dos nobres sobre o povo!”

“O que é verdade,” disse a voz de Wiederkher atrás deles, “é que líderes nunca deveriam discutir em frente aos subordinados, senão sua capacidade é contestada. Vocês podem continuar sua conversa no castelo. Eu cuido das coisas por aqui.”

O respeito trazido pelos anos fez com que os dois jovens nobres atendessem as ordens do capitão. Atrás dele, seis soldados começavam a dispersar a multidão e acorrentar o homem caído.

Dugal e Jürgen montaram os cavalos e tomaram o caminho do castelo, açoitando os cavalos a galopar na pressa de deixar aquele cenário lamentável.

Dois guardas trouxeram o homem inconsciente para Wiederkher, que mirou sua face e rosnou.

“Este deve ter escapado da caçada de ontem... executem-no.”

 

Mais tarde...

Luca chegou ao castelo uma hora depois do meio dia. Arnoud ficou com Gerard, que se recusou a deixar a igreja. Quando Luca saiu, tentava substituir a corda arrebentada por uma que ele retirou de um cravo velho quebrado que achou na sacristia. Gerard planejava consertar seu instrumento e recomeçar o ensaio à tarde, e Luca decidiu procurar Maurice para assistir. A esperança era que a presença de um cavalheiro refinado traria mais sorte do que a que trouxe a de dois selvagens incultos vestindo metal. Ao chegar, percebeu que seu estômago reclamava de fome, de um jeito que até a repulsiva e gordurosa comida Eisen poderia parecer um banquete.

Encontrou Maurice andando pelos jardins. Se admirou por um momento que uma construção tão bruta quanto aquele castelo pudesse abrigar um jardim tão delicado quanto aquele. Ele lembrou de Maurice contar-lhe que Reinhard havia perdido sua família e concluiu que o jardim era uma lembrança da esposa falecida do eisenfurst.

“Maurice?”

“Oh, Luca! Que bom te ver! Ouvi dizer que você e Gerard foram ensaiar. Como vão indo?”

“Maravilhosamente, como sempre. A composição de Gerard é de grande beleza, sem dúvida o lorde será tocado por ela e direcionará sua opinião ao nosso lado da barganha.”

“Ainda estou para ver uma disputa comercial ser resolvida pelo coração ao invés da bolsa...”

“Mas se ambos os lados da estrada são seguros e têm a mesma distância, não é melhor andar pelo mais belo?”

“Com certeza, meu amigo. Com certeza.”

“Planejo comer algo e voltar para a igreja onde estamos ensaiando. Se juntaria a mim no almoço e na volta ao ensaio para assistir?”

“E como eu poderia recusar?”

 

Uma hora mais tarde...

Após comer, Luca e Maurice deixaram o castelo. Maurice sugeriu que caminhassem até lá, e Luca concordou. Andaram calmamente e sem pressa, aproveitando o sol que era tão raro nessas terras. Luca já tinha esquecido do fiasco da manhã, e se preparava para uma performance perfeita. Passaram por ruas cheias de gente até que Maurice se cansou de esbarrar em waisen e sugeriu cortar caminho por uns becos.

Luca protestou, pois podia sentir o cheiro de encrenca a um quilômetro de distância, mas acabou concordando com Maurice. Se embrenharam por uma viela até que, virando uma esquina, podia ver três homens sentados em caixotes adiante no beco. Casualmente olhou para trás e viu mais três 15 metros atrás. Maurice continuava distraído em sua conversa, enquanto Luca prestava menos atenção nas palavras e colocava a mão no cabo de seu florete.

Continuaram, e quando se aproximaram dos três homens estes se levantaram de seus assentos improvisados e bloquearam o caminho, todos com porretes em suas mãos calejadas. Os três atrás acabavam de virar a esquina. Um dos homens sorriu com dentes amarelados e tortos e preparou sua arma.

“Oh! O que é isso...” disse Maurice.

Luca nunca deixaria eles terem o primeiro movimento. Puxou o florete com a mão esquerda e com a direita uma adaga oculta no cinto como lhe ensinaram na escola de esgrima. Estava agradecido que seu entediado temperamento artístico lhe havia levado à arte da espada como uma forma de se entreter, um capricho que agora estava prestes a salvar sua vida.

Estocou com sua lâmina a barriga do homem de dentes amarelos, no mesmo movimento usando a adaga para impedir um ataque de um outro bruto, cortando seu pulso. Finalizou este com uma cotovelada do braço esquerdo enquanto tirava a espada da bainha de carne onde a havia guardado. O terceiro homem teve a adaga enfiada no peito antes que Luca precisasse se virar para encontrar os atacantes que vinham por trás.

Maurice estava caído no chão com sangue na testa. Os três passaram por cima de seu corpo em direção a Luca, dois armados com paus e um com uma grande faca nas mãos. Luca enfiou seu pé esquerdo no chão e chutou, jogando lama nos olhos do homem com a faca. Na volta do impulso, atirou sua adaga na garganta de um outro com toda sua força. O terceiro tentou atingi-lo, mas teve seu golpe aparado pela espada, e um riposte rápido indicou que só havia mais um homem para enfrentar.

Acabara de limpar os olhos da lama e encarava o Vodacce, que abandonara seu jeito delicado e se mostrava tão feroz e intimidador como o mais sangunário Vesten.

“Não me importo se você está me entendendo ou não, mas vou dizer que estou terrivelmente cheio desse país e das pessoas nele. Estou ficando irritado e você será o sortudo em quem vou descarregar todas as minhas frustrações e infelicidades!”

Luca nunca soube se o homem entendeu, mas ele se virou e correu como se Legião estivesse em seus calcanhares. O sangue que inundava seus olhos se foi, e lembrou-se então do companheiro ferido no chão.

“Maurice, Maurice, está bem? Acorde, Maurice!”

“Hurmmm... Luca? Onde estamos... Oh! Aqueles brutos! O que aconteceu?”

“Eu os derrotei. Vamos voltar ao castelo!”

“Não! Estou bem. Vamos indo antes que os outros fiquem preocupados.”

“O quê? Maurice, acabei de matar quatro homens e quebrei o queixo de um quinto! Precisamos chamar a guarda e...”

“E arrumar problemas? E arriscar prejudicar nossa missão aqui? O que o eisenfurst diria ao saber que nos envolvemos com lutas e morte nas ruas da cidade? Não, Luca. Vamos esquecer este incidente e não vamos contá-lo para ninguém.”

 

continua...