Mais que um quarto, menos que um terço

 

Quando me aproximei da maioridade, decidi entrar para a vida militar. Meus pais eram cidadãos abastados, e podiam custear o melhor equipamento que o dinheiro podia comprar.

Fui ao grande armeiro Espêmion encomendar minha panoplia. Ele mediu meus ombros para a placa peitoral, as canelas para as grevas, minha cabeça para o elmo, e meu antebraço para a espada. Foi quando, encostado na mureta, vi, em uma alcova, uma lança e um escudo apoiados na parede. Havia outros, muitos outros, muitas cores, muitas formas, mas aqueles se destacavam dos demais. A superfície do escudo parecia gasta, e a pintura de uma face feminina sorridente quase desaparecia.

Disse então ao ilustre armeiro que não seria necessário fazer novos escudo e lança para mim, pois iria querer aqueles que lá estavam e tanto se destacavam.

“São muito velhos para você.”

Pouco me importava. O velho armeiro então não quis cobrar pelo escudo e pela lança, porém insisti em pagar pois sabia que, a partir daquele momento, aquelas iam ser as partes mais importantes de minha vida. Enfim ele aquiesceu e estipulou um preço, que era apenas uma fração do que seria o de um equipamento novo.

Mais que um quarto, menos que um terço.


Iria demorar para o equipamento novo ficar pronto. Mas levei comigo escudo e lança, pois já a partir daquele momento eles eram minha responsabilidade.

Tiras novas de couro cru para o escudo. Restaurei a pintura após lixar a madeira e o couro curtido. Reforcei algumas ripas que pareciam trincadas.

Tiras novas de linho branco para o cabo da lança. Afiei a ponta de ferro e usei azeite para oleá-la. Retirei as farpas e substitui o contra-peso enferrujado por um espigão novo de bronze.

“Por que se dedicar a tais velharias?”

Diziam pais, parentes, amigos. Sentia que aqueles dois itens eram importantes de uma forma que todo o resto parecia menor. A família, a pólis, o exército, tudo o mais era uma parte pequena da minha nova vida.

Mais que um quarto, menos que um terço.


Estava na academia. A couraça era folgada – esperava-se que meus músculos se desenvolveriam durante o treinamento. O elmo era quente e o suor pingava nos meus olhos – eu deveria aprender a resistir inconvenientes maiores do que reles água salgada na vista. Minhas pernas ficavam pesadas devido as grevas – e exigiam que eu fosse capaz de correr com todo aquele peso. A espada era forte e afiada – debochava de mim mesmo por não sê-lo.

E me sentia bem porque tinha comigo minha lança e meu escudo. No braço esquerdo ele era confortável, não sentia seu peso nem o tinha apertado pelas tiras. Na mão direita ela parecia viva. Macia quando a tocava com suavidade, e subitamente pulava e se erguia, preparada para enfrentar o mundo.

“Formar falange!”

Junto a meus colegas observava suas armas. Alguns traziam escudos perfeitos, novos, reluzentes. Outros tinham lanças velhas e mal-cuidadas, que encaravam como pouco mais que um instrumento para dispensar dor. Olhando para eles, vi alguns que pareciam ter o mesmo apreço que eu tinha, apreço pelo que dali em diante significaria vida ou morte. Não muitos, poucos.

Mais que um quarto, menos que um terço.


Eu me encaixava bem na formação. Para mim era natural defender aqueles que do meu lado estavam. Fui designado para a linha de frente, onde meu escudo protegia mais o companheiro da esquerda do que a mim, enquanto eu era protegido pelo soldado à minha direita.

Essa era uma parte desconfortável. Não tinha nenhum problema em zelar pela vida de um camarada, mas sentia-me mal por depender de outros que zelassem por minha própria. Então não pretendia deixar que aqueles que poderiam me ferir se aproximassem. Minha lança cuidaria disso.

Era ingênuo. Agora sei que esperavam de nós que pensássemos assim. Era isso que fazia a falange funcionar.

“Avançar!”

Meus amigos dependiam de mim como eu dependia deles. Dependiam de mim como eu dependia de minha lança e de meu escudo. Meu escudo que protege mais ao homem à minha esquerda do que a mim mesmo. Mas ele protegia pelo menos uma parte de mim.

Mais que um quarto, menos que um terço.


Em combate individual eu ainda preferia usar escudo e lança. Fora da formação a maioria preferia usar a espada, e os instrutores recomendavam-na como uma arma mais ágil, mais útil à curta distância.

Eu não iria dispensar minha lança como uma ferramenta inadequada. Aprimorei-me no seu manejo, tornei meus golpes mais fluidos, usando toda sua extensão ao meu favor. Não deixava que inimigos ou amigos se aproximassem. Mantinha a distância daquilo que poderia me ferir e daquilo que eu estava ferindo. A morte que eu causaria estaria tão distante quanto o cabo da minha lança.

“Mais uma vez!”

Foram-se anos de treinamento. O manequim de palha e estopa estava lá no lugar de meu inimigo, e os meus pontos de ataque eram claros. A maior parte dele estava protegida, mas havia a área onde eu poderia acertar e causar o maior dano possível. Era uma parte exposta do todo.

Mais que um quarto, menos que um terço.


E chegou o dia em que a batalha se mostrou. Pessoas iriam morrer. Não temia o resultado da batalha, pois tinha em meus braços o que havia de mais importante na minha vida. Foi muito tempo. Por mais de um quarto da minha vida dependi de lança e escudo para me dar a força que eu não tinha para conquistar o que queria. Desejava viver pelo simples motivo de fazer com que aquela parte representasse mais do que um terço. Mais do que metade. Porque para mim já representava mais que tudo.

O inimigo veio e se chocou contra nossa muralha de escudos. Uma muralha da qual o meu próprio fazia parte, e por isso ela era forte. Nossas lanças, minha lança, perfuravam pele e carne para beber do sangue pela primeira vez, ávidas.

Flechas desceram do céu como aves de rapina e nossos escudos nos protegeram. Nem uma ponta penetrou a face sorridente que me dava proteção.

Mandaram os hipikkons para nos dispersar. Nossas lanças derrubavam-nos de seus cavalos e tomavam suas vidas. Os animais, desembestados, caiam e tropeçavam por cima da nossa falange. Vi companheiros esmagados pelo peso, suas armas inúteis contra aquele inimigo.

“Dispersar formação! O inimigo está debandando, é hora de acabar com eles!”

Nos separamos. Agora eu só dependia de meu escudo e minha lança. Mirava meus golpes e dispensava dor e morte rapidamente. Acertava nos pontos certos com precisão perfeita. Nem um quarto, nem um terço de desvio.

E sem aviso sofri um golpe. O escudo resistiu, mas eu perdi o equilíbrio. Outro golpe e a madeira que eu havia reforçado anos atrás cedeu. Eu não podia ver, o suor irritava meus olhos, mas podia imaginar no reflexo na armadura de meu algoz que o sorriso na face de meu escudo estava destruído.

Levantei minha lança buscando o coração de meu oponente. Talvez devesse ter largado o escudo inutilizado para brandi-la com ambas as mãos, mas ele ainda me dava força só por estar no meu braço. Não era suficiente. A lâmina do machado partiu minha lança pouco acima de onde eu a segurava. Virei-a rapidamente para atacar com o espigão de contra-peso, mas o machado voltou de seu arco e partiu-a de novo.

O instinto me fez levantar o escudo para aparar o próximo golpe. A estrutura enfraquecida se desmantelou, absorvendo a força, porém se arruinando completamente. Como último favor, o escudo prendeu o machado em meio a seus destroços.

O inimigo largou o machado preso e sacou seu punhal. Impeliu grande força em seu golpe dirigido ao meu peito, e a lâmina de ferro perfurou a couraça onde o bronze era menos espesso, penetrando quase meia polegada em minha pele.

Mais que um quarto, menos que um terço.


A dor foi grande. Não pela ponta aguda que se aproximava do meu coração. A dor era por ver que aquilo onde coloquei minha vida não existia mais. Pedaços de escudo amarrados por tiras frouxas quase soltas no meu braço esquerdo, um toco de madeira envolto em trapos de linho suados e ensangüentados estava na minha mão direita. E o fim da dor estava lá, no meu peito, abrindo caminho entre bronze, costelas e músculos em direção ao meu coração partido.

Acabaria assim? Aquelas armas estiveram comigo por mais que um quarto, menos que um terço da minha vida; e agora que elas falharam, que não estavam mais comigo, abriria mão dos outros quartos, outros terços, toda ela?

Lança e escudo foram importantes. Eu os dava grande valor porque eles eram extensões de meus próprios braços. Não havia notado até aquele momento que eram importantes somente porque eu os sentia como parte de mim. Mim. Eu era importante. A proteção que eles me davam era meu ato, minhas ações. Se eles se quebraram foi por minha falha, que não cuidei deles como deveria, não lidei com eles como deveria, dependi deles quando não deveria. Eu julguei errado e as duas coisas mais importantes da minha vida estavam quebradas nas minhas mãos, por colocar neles o fardo que deveria ser distribuído pelos outros quartos, outros terços da panoplia. E eu não mancharia mais a memória delas.

“Não!”

Balancei o braço esquerdo e mais que um quarto, menos que um terço de escudo caíram no solo. Abri a mão direita e larguei mais que um quarto, menos que um terço de lança. O punhal penetrava mais no meu peito. Minhas mãos agarraram o braço que pressionava a lâmina contra meu peito e a couraça de que nunca dependi e que agora me salvava, e fizeram pressão não em um quarto, não em um terço, exatamente na metade. Fiz seu cotovelo virar para o lado errado com um estalo horrendo.

O rapaz deixou escapar um grito de dor. Com minha perna pesada pelas grevas chutei-o na altura do joelho, esmigalhando a articulação e fazendo-o desabar. Sua mão ainda agarrava o punhal, que ao sair de seu lugar confortável em meu peito levou consigo um rastro de sangue quente que espirrou nos olhos do jovem soldado.

Saquei a kopis da bainha de que raramente saíra e pressionei-a contra sua garganta. Ele estava à minha mercê. Morte ou servidão o esperavam agora que fora vencido. Sob o sangue que jorrou de mim, debaixo do elmo, vi em seus olhos as lágrimas da decepção. Nunca soube os reais motivos, mas tenho quase certeza que ele chorava porque achava que aquilo em que ele confiara lhe falhara. Senti vontade de compartilhar com ele o que havia acabado de descobrir, que nada nos falha a não ser que deixemos. E se para muitos esta pressão é demais, para mim estava claro que eu nunca mais me falharia. Não que nunca iria acontecer, mas eu usaria todas as minhas forças, e todas as minhas armas, para não mais falhar de novo.

A batalha tinha durado muito e eu estava cansado. Não queria mais matar. Peguei os restos de meu escudo e lança, desprendi o machado e o coloquei em frente ao inimigo ajoelhado sobre a perna quebrada. Que ele fizesse seu próprio destino, minha tarefa era derrotá-lo e eu a cumpri. Não o mataria e não o tomaria como escravo. Já fui um escravo de mim mesmo. Já morri por minhas próprias armas. Não infligiria a outro tal destino. Pelo campo todo, meus companheiros levantavam suas lanças e escudos para o ar em comemoração. Vencemos a batalha que durou boa parte do dia.

Mais que um quarto, menos que um terço.


O ferimento em meu peito sarou. Os em minha alma curaram. Não perdi o apreço que tive por lança e escudo, pelo toque macio e pelo sorriso singelo. Mas não dependia mais deles.

Reconheço que muita virtude me falta para ser perfeito. Valerei-me de outras forças, mas as únicas em que dependerei minha vida serão aquelas que vem de dentro de mim. Minha lança, meu escudo, espada, armadura e elmo, companheiros, pólis, mundo; não mais pagarão e sofrerão pelos meus erros.

Sempre precisarei de um sorriso para me proteger. Que eu garanta então que ele nunca desapareça da face de meu novo escudo. Que irei encontrar não importa quantos armeiros, quantas pólis tenha que visitar. Estou disposto a gastar uma parte de minha vida nisso.

Mais que um quarto, se necessário.

Menos que um terço, se possível.