Entre a morte e a vida

Capítulo 1

Meu filho, me dói o coração olhar para você, aí estirado nessa cama, enfermo por minha única e exclusiva culpa. Sim, meu filho, sua febre e seus terrores foram causados por mim. Daria tudo para estar em seu lugar... Enfim, acho que lhe devo explicações, mesmo que você não possa me escutar através desse seu profundo coma.

Tudo começou no ano de 751 após aqueles acontecimentos que mudaram nossa terra. Foi quando eu encontrei um antigo livro, maldito livro. Ele descrevia um amuleto criado por Dioniso, um antigo nobre de Mordent. Dioniso era um estudioso dos mortos, assim como eu e você. O amuleto era de grande poder e tinha propriedades sobre a vida e a morte, um artefato incrível que poderia dar a quem o possuísse o poder de restaurar a vida de qualquer um. Porém, tudo tem um preço e eu, na época, não sabia disso... Fiquei fascinado pelo item! Acho que se recorda de como eu mudei nesse tempo. Nada me motivou tanto nessa vida quanto estudar sobre tal amuleto. Passei dias acordado, privado do sono que tanto nos reconforta, mergulhado em livros e pergaminhos antigos que se referiam a relíquias do passado. Passei dez meses sem ver progressão em minhas pesquisas e estava quase abandonando a idéia de um dia adquirir tal artefato, quando, num certo dia, encontrei em uma biblioteca de Port-a-Lucine, o diário do próprio Dioniso. O diário revigorou minhas expectativas, mas não meu estado de saúde que se encontrava muito debilitado, resultado de uma vida sem sono e com o mínimo de alimentação necessária.

Quando retornei à casa, com a posse do diário, caí enfermo em uma cama. Estava fraco e muito doente. Porém, ainda que sob tais circunstâncias, tendo que ficar em minha cama dia e noite, não conseguia parar de ler e estudar a vida desse mago tão poderoso e excêntrico. Na leitura, descobri o quão sinistro e bizarro era esse homem. Ele fez experiências das mais ocultas possíveis que me enchem de medo só de lembrar. Dedicou seus esforços ao estudo do significado fisiológico e espiritual da morte, assim como seus devidos efeitos. Para isso, induzia a morte de determinado indivíduo, avaliando pormenorizadamente as implicações dessa experiência para o próprio sujeito, estudando o exato momento em que a vida se esvaece, cedendo lugar à morte. O objetivo de seus experimentos, bem como o de  sua vida, era conseguir trazer as pessoas de volta da morte exatamente iguais ao que eram quando vivas, chegando a perder, em nome da consolidação dessa meta prevista, mais de cem pessoas. Mas ainda assim, não deixava de ser um homem brilhante, dotado de uma admirável e rara determinação. Certa vez, ele conseguiu reanimar um homem sessenta e seis vezes antes de perdê-lo para a morte. Sim, meu filho, ele acreditava que guerreava contra a morte. A simples explicação que a morte faz parte do curso da vida não o convencia. E ele acreditava que venceria essa batalha um dia, somente com o uso da arma certa. Foi quando ele criou o amuleto da morte e da vida; para dar a vida, teria que haver a morte. Demorei demais para descobrir isso. Ele demorou quase trinta anos para confeccionar esse amuleto e logo que concluiu seu trabalho, talvez por ironia do destino ou como vingança de seu tão precioso objeto de estudo, ele faleceu, vítima de um ataque do coração. Essa última parte, é lógico, não li em seu diário e sim, em outras anotações. Resolvi então procurar pelo seu túmulo, acreditando ser provável que o amuleto estivesse enterrado com ele.

Percorri todos os cemitérios da região e constatei que nenhum deles havia cadastrado homem algum com o nome de Dioniso Mirlkov que havia morrido no ano de 700. Mais uma vez, depois de dois anos, quase larguei minha busca. Foi quando, certo dia, voltando para nossa casa, com o diário na mão, lembrei que ele descrevia sua moradia em algumas páginas do livro da sua vida. Foi então que vi uma mansão de três andares, isolada da cidade, com duas torres de quatro andares, uma em cada lado da casa. Abri o diário na página onde ele descrevia sua mansão "... e corri da minha torre para a outra, onde ficavam todos os meus livros e no meio do caminho, notei que as gárgulas, uma de cada lado do (D.M.), que se encontrava superior a porta principal, pareciam seguir-me com o olhar o caminho inteiro, me repreendendo  como se soubessem que eu estava fazendo algo de errado."

De súbito, certifiquei-me de minhas suspeitas e logo solicitei ao cocheiro que parasse e carruagem para que eu pudesse descer e me dirigir rumo à casa. Bati na porta e ninguém apareceu, bati palmas e ninguém respondeu. Notei que o portão estava aberto e resolvi entrar chamando por alguém. Caminhei até a porta principal e notei que a mansão estava totalmente abandonada. Sempre me anunciando, continuei percorrendo o caminho à minha frente e observando atentamente suas peculiaridades. Não haviam móveis, tampouco vida naquele recinto. Os fundos da mansão davam lugar a um enorme cemitério, onde Dioniso enterrava os resultados de seus experimentos fracassados. Como destaque, um mausoléu se pronunciava e foi para lá que, em seguida, eu me conduzi. Não pude enxergar bem, pois a noite não contava com a participação da lua, o que deixava-a  particularmente sombria. Ainda assim, fui capaz de ler o nome Dioniso Mirlkov na porta do mausoléu. Resolvi, então, voltar no outro dia.

Na manhã seguinte, juntei as coisas que iria precisar e fui até a mansão de Dioniso Mirlkov. Lá chegando, encontrei tudo da maneira que tinha deixado na noite anterior e fui direto ao túmulo do antigo mago. A porta estava trancada. Forcei e entrei e para minha surpresa, estava tudo remexido. Logo deduzi ter sido obra de ladrões de tumba. Haviam estátuas jogadas ao chão, algumas rachadas e outras quebradas. O túmulo em si estava aberto com sua tampa partida ao meio. Me aproximei lentamente da tumba receoso do que pudesse se passar lá dentro. Foi então que vi uma escada que descia para uma escuridão similar a noite anterior. A princípio pensei em descer, mas ouvi vozes vindas da escada e isso me apavorou. A coisa mais sensata a se fazer nesse momento era sair imediatamente dali. Quando me virei para sair do mausoléu vi no chão umas das estatuetas de pedra que estavam rachadas refletindo a luz do sol direto em meus olhos. Nem pensei, peguei a estatueta e saí, trancando a porta antes de disparar em uma corrida até a carruagem que me esperava no portão da mansão. Mandei o cocheiro ir a toda a velocidade para nossa casa. Examinei a estatueta e percebi que o que brilhava era um cordão de prata que saía de uma de suas rachaduras.

Chegando em casa, fui direto para meu laboratório com a estatueta. Examinei-a por duas ou três horas, fazendo o possível para não danificar o seu conteúdo interno. Mais tarde, vim a saber que não era tão fácil assim causar algum dano severo àquele item maldito. Descobri também o melhor jeito de retirar o cordão de prata de dentro daquele demônio de pedra. Quando consegui, vi o amuleto e ainda me lembro claramente a emoção que senti ao tocá-lo... Podia sentir seu poder fluindo pelo meu corpo. Foram anos de estudos e de buscas, que naquele momento, tinham cessado... Eu tinha o amuleto da morte e da vida!

 

Capítulo 2

O amuleto era muito bonito. Aliás, não sei bem se bonito é a palavra certa para descrevê-lo. Ele era feito de prata, o cordão era grosso e o medalhão era um crânio humano, produzido pelo mesmo material, com duas pedras azuis nos lugares dos olhos. Essas pedras brilhavam quando o amuleto entrava em ação.

Meu trabalho foi motivado pela minha incontrolável curiosidade sobre o uso e funcionamento do item. Agora que o possuía, tonou-se necessário conhecê-lo. Passei cinco incansáveis anos pesquisando e experimentando as mais diversas formas de ativar o amuleto. Foi o tempo em que a morte rondou nossa casa, deixando suas indeléveis marcas. Primeiro foi  Josep, o nosso cocheiro, que amanheceu morto um dia depois que vi a primeira luz sair do medalhão. A princípio, não achei que houvesse ligação com a morte. Dois meses depois, quando consegui fazer com que o medalhão ressuscitasse um pássaro, nosso melhor cavalo foi alvejado por uma flecha perdida de um caçador. Na época também não liguei uma coisa a outra.

E assim foram, a governanta, o filho do nosso vizinho, o Jack, o Marcius e por último, sua mãe. Sim, meu filho, hoje tenho certeza de que a morte da sua mãe foi desencadeada pelo medalhão. E só depois disso pude entender uma das últimas frases do diário, que dizia:  "Hoje eu sei, a morte não pode ser vencida, mas pode ser negociada". E é assim que o amuleto funciona. Enquanto ele traz alguém de volta à vida, ele tem que levar outro para a morte, sendo esse, invariavelmente, alguém de grande importância para aquele que porta o amuleto.

Demorei muito para perceber isso e receio nunca me perdoar pela morte de sua mãe. Mas eu não poderia saber... Não tinha como saber!!!

Após a morte de sua mãe, decidi que iria destruir o medalhão. Achei que finalmente iria encontrar a paz que tínhamos antes de eu ler aquele maldito livro. Por falar nisso, a primeira coisa que fiz foi queimar todo o material de pesquisa que eu havia adquirido sobre o amuleto, bem como sobre Dioniso Mirlkov. Na lareira do meu laboratório consegui me livrar de tudo, menos do próprio artefato. Isso não era tão simples. Parecia impossível destruí-lo! Tentei atear fogo, jogar ácido, quebrá-lo com um martelo e nada. Nada o deformava! Assim, já sem esperanças de destruí-lo,  decidi guardá-lo e nunca mais usá-lo.

Porém, foi nessa época que as coisas pioraram. De alguma maneira alguém descobriu que eu estava de posse desse artefato. Talvez a própria morte tenha me delatado para essa maldita seita. E minha vida se tornou um grande inferno. Dia e noite eu era perseguido  por esses demônios e sempre escapava por muito pouco. Viajei então para nossa casa de campo, acreditando que nunca iriam me encontrar lá. Estava errado.  Passei um mês de tranqüilidade e depois fui atacado por quatro homens, na porta do estábulo. Os quatro vestiam mantos pretos e empunhavam adagas. Um deles tomou a frente e falou: "Me entregue o amuleto, humano!!!". Hesitante, neguei que o artefato estivesse sob minha posse. No entanto, eles não acreditaram em meu discurso e assumiram posição de combate. Repentinamente, me dei conta de que eu não era páreo para eles. Então meu filho, eu cometi o maior de todos os meus erros. Eu disse que tinha entregado o medalhão para você e que eles poderiam desistir de um dia tocar no amaldiçoado artefato, pois você já tinha o destruído.  Eles riram, uma risada que me amedronta até os dias de hoje. Risada essa que escuto todas as noites antes de cair no sono. E que sono eu durmo hoje! Sou atormentado por todos os meus erros e minha ambição. Acho que nunca mais terei paz.

Eles viraram as costas e partiram. Percebi que eles não estavam montados e então, selei o nosso cavalo mais rápido e parti para Modentshire para te encontrar antes deles. A viajem foi penosa, não haviam suprimentos necessários - aliás, nem tive tempo para pegá-los. Mas não parei nem por um minuto para pensar em comer ou dormir. Não podia te perder, você era a única pessoa que eu amava que havia restado. Fiz o percurso com a metade do tempo que costumava fazer. Cheguei em casa ainda pela manhã. Entrei correndo e fui direto para seu quarto. Você não estava. Te procurei pela casa toda e não te encontrei. Aquela risada ressoou na minha cabeça e, como um insight, percebi que havia te perdido para sempre. 

Então lembrei de um feitiço que eu tinha lido anos atrás e que, na época, não foi de grande importância e valor para mim. O feitiço respondia se a pessoa estava viva ou morta. Corri para meu laboratório e preparei tudo para executá-lo e, ao findá-lo, recebi uma resposta que elevou minha moral: você ainda estava vivo! O maior dos problemas seria como achá-lo. O lugar em que estava e suas condições me preocupavam imensamente. Era preciso encontrá-lo o mais rápido possível.

 

Capítulo 3

Não sabia por onde começar, imaginava que aqueles demônios deveriam estar contigo e meu coração apertava só de pensar o que eles poderiam estar fazendo com  você, que terrores estaria passando nas mãos deles. Mas eu sabia que nunca conseguiria derrotá-los. Pensei em levar o amuleto da morte e da vida para tentar te libertar, porém, logo desisti da idéia, pois não imaginava para onde eles teriam te levado. E não gostava nem de imaginar o que esses demônios poderiam fazer se tivessem a posse desse item maldito.

Fiquei uma semana acordado procurando alguma maneira de te achar e de derrotar aquelas criaturas do inferno. Depois de nove dias, recebi uma visita que me fez  recobrar as esperanças. Seus antigos amigos, Darov e Sophie, que trouxeram consigo ótimas notícias. Eles vieram para uma reunião marcada por você na nossa casa. Darov em sua armadura completa e toda negra, característica dos cavaleiro das sombras, se espantou quando me viu, perguntando-me: "Mas o senhor não estava mal? Denny nos chamou porque estava preocupado... Ele notou que o senhor ficou muito mal com a morte de sua esposa". Sophie andou na minha direção e pôs as mãos em minha cabeça, dizendo: "O senhor está muito doente, muito abatido, a quantas noites o senhor não dorme direito?". E com a cabeça para baixo, respondi que já haviam anos que não dormia o sono dos justos, talvez porque não fosse mais justo.

Sophie me perguntou se os outros já haviam chegado e isso logo me fez recordar de sua infância. Que dias felizes eram aqueles, quando você brincava com seus amigos em nossa casa de campo! Quem diria que nossa vida iria se tornar esse pesadelo... Darov e Sophie me fizeram ver como você cresceu. Darov é um homem forte e robusto e Sophie, uma linda mulher que sustenta sua beleza na bondade que carrega. Ela leva consigo o símbolo da igreja de Ezra. Parece mesmo que todos seus amigos realizaram seus desejos da infância!

Antes do anoitecer, chegaram Hannah, que permanece com o temperamento de um cavalo selvagem e Guilien, que continua a realizar suas experiências com ervas e enxofre - só que agora seus elixires funcionam! Isso me fez lembrar uma vez, quando você tinha nove anos e me trouxe um dos elixires de Guilien para curar a minha tosse. Vomitei por três dias e minha tosse continuou a te incomodar. Acho que as coisas nunca mais serão como antes. A Hannah está linda, seus cabelos brilham à luz da lua! Quando a vi montando, não acreditei que ajudei a criar essa menina. Ela fez questão de me mostrar as mudanças que tinha feito na arma que herdou do pai. Está atirando muito melhor agora com aquela arma estranha que usa pólvora para disparar chumbo.

Hannah, assim que entrou em casa, me perguntou sobre você e eu respondi que deveríamos esperar os outros. Ainda assim, insistiu para que eu falasse algo. Quando resolvi começar a falar sobre o amuleto e tudo o que tinha ocorrido comigo até aquele dia, escutei alguém bater à porta. Abri, deparei-me com uma mulher loura, vestida com uma roupa de couro leve e preta, uma capa também preta com capuz e uma espada curta embainhada, presa no cinto. Não reconheci à primeira vista, mas ao prestar mais atenção, me dei conta de que era Ariel. Como ela havia mudado! Aquela que era a mais criança entre vocês agora é uma mulher. Ela entrou na sala e cumprimentou a todos, mas sempre com um semblante sério, porém amigável.

Logo depois da chegada de Ariel, escutei mais uma vez alguém em nossa porta. Me levantei e abri, também não reconhecendo suas feições num primeiro momento. Um homem, com a barba por fazer a vários dias, cabelos pretos, compridos e sem um corte definido, roupas sujas, característico de quem vive nas florestas e pântanos. As únicas coisas que se encontravam limpas eram seus dois machados de mão, que ficavam pendurados em seu cinto, um em cada lado do corpo. Era Clave. Sua expressão não estava nada bem e fitando-o, parecia que eu contemplava um espelho no passado. Sua expressão era de culpa e seu olhar parecia sem esperança.

Todos estavam conversando quando escutamos do lado de fora da casa um violino e um pandeiro. Logo tivemos a certeza de que eram Ian e Sarah, os dois irmãos ciganos. Abri a porta  e vimos Ian com o nariz sangrando, devido a uma briga com rufiões da cidade. É, meu filho, eles ainda enfrentam um grande preconceito por serem meio-vistani.  Eles entraram e Sophie logo fez uma magia de cura para cicatrizar o ferimento, enquanto Ian ainda se divertia com a surra que acabara de dar nos rufiões. Sarah olhou para mim e disse que um dia antes havia sonhado com você, e isso fê-la saber que ainda estava vivo, embora sofrendo muito. É, parece que ela herdou o poder da mãe de ver o passado, o presente e o futuro em seus sonhos. Isso confirmou a magia que eu tinha feito.

Reuni todos em volta da mesa da sala e contei toda minha história. Todos ficaram surpresos, alguns me repreenderam, outros sentiram pena. Após escutar todo o discurso, Ian disse que já tinha ouvido falar de Dioniso e do amuleto e que provavelmente as criaturas que estavam atrás dele e que estavam com você, eram mortos-vivos que pertenciam a uma sociedade secreta de Necropolis chamada "Ordem profana do túmulo". Essa ordem é composta de mortos-vivos com consciência e que, por isso, se tornavam mais perigosos. Clave esboçou um sorriso tímido, confessando que estuda os mortos que andam há um bom tempo e que com esse tipo de criatura ele sabia muito bem como lidar, bem como a maneira mais eficaz de combatê-la.

Nosso maior problema era por onde começar. Ian disse que deveríamos ir até Necropolis, mas Sarah disse que não, pois sabia que você não estava tão longe assim. Ainda pensativos,  Guilien resolveu a questão, dizendo: "É lógico, o túmulo de Dioniso Mirlkov! Se tinha alguém lá, provavelmente estava procurando pelo amuleto." E foi dessa forma que, juntos, decidimos, na manhã seguinte, ir explorar aquele túmulo, onde encontrei a minha perdição.

Antes de irmos dormir, Clave veio em minha direção, com um aspecto um tanto abatido e triste e me falou que não poderia dormir junto com os outros no quarto de hóspedes, pois sofria de uma maldição. Durante a noite, ele corria o risco de assumir uma personalidade maligna, que forçava-o a matar todo ser vivo que estivesse em seu caminho. Ofereci e ele aceitou dormir na casa dos fundos, a casa do velho Josep. Tendo as chaves, eu poderia trancá-lo pelo lado de fora, mantendo-o preso e garantindo, dessa forma, a segurança do restante do grupo.

Essa noite foi longa. Demorei muito para cair no sono e fiquei pensando o que aqueles monstros poderiam estar fazendo com você. Pensava também na sua situação, afinal, você ao certo estava entendendo muito pouco a respeito do que estava acontecendo contigo e o porquê de tudo aquilo. É, meu filho, agora você compreende por que sofreu tanto. Foi por minha culpa... Só minha...

 

Capítulo 4

Acordei de manhã com o cheiro de café que Sarah fazia para todos. Desci para a sala e vi que em um canto, Guilien estava preparando seus elixires. Passei pela porta e vi Sophie ajoelhada próxima à fonte do jardim, rezando e pedindo proteção para seu deus Ezra. Assustei-me ao escutar o barulho da arma de Hannah, que estava treinando pontaria. Do lado de fora, estavam também Ian e Darov, conversando sobre o passado. Ao me avistarem, me seguiram em direção à casa dos fundos, onde Clave permanecia preso.

Abri a porta da pequena casa e vi Clave sentado no chão, com as costas na parede, com os braços envolta dos joelhos e as pernas dobradas. Parecia estar em posição fetal. A casa estava uma bagunça, a cama quebrada e virada, o armário  não chão, também em pedaços. Clave estava num estado deplorável, seus braços apertavam suas pernas contra seu peito. Darov correu em sua direção e o levantou. Ian contou sobre uma doença que alguns Vistani apresentam que se assemelha ao estado apresentado por Clave. Ian tentou animá-lo com uma história sobre um velho Vistani que se curou dessa terrível doença e que, mais tarde, conseguiu viver em paz. Saímos da casa e preferimos não comentar nada a ninguém sobre o ocorrido.

Estava pronto quando notei que ainda não tinha visto Ariel aquela manhã. Perguntei então à Sarah se tinha visto a menina, obtendo uma resposta negativa. Por volta das oito horas da manhã, a porta se abriu. Era Ariel que retornara da cidade, onde foi providenciar todos suprimentos e provisões que poderíamos necessitar em nossa empreitada.

Foi então que partimos em direção à mansão de Dioniso Mirlkov, o maldito mago ambicioso que construiu o artefato que foi o objeto da minha e da sua desgraça.

A mansão estava do mesmo jeito que eu a deixei anos atrás, a única diferença era o mato que havia crescido. Entramos e fomos direto para o cemitério que se encontrava atrás da casa e, de longe, vimos o mausoléu. Este, por sua vez, se encontrava nas mesmas condições que da última vez em que o vi, só que desta vez, a porta estava escancarada. Dentro do mausoléu havia alguma coisa diferente, o túmulo estava trancado e a tampa já não se achava mais partida ao meio como anteriormente. Darov e Clave empurraram a tampa do túmulo com muito esforço, já que era feita de granito puro. A tampa foi posta de lado e eu não podia acreditar no que via. Ao invés da escada, estava um esqueleto de um velho mago, com as mãos cruzadas no peito e fios de cabelos ainda presos no crânio. Todos me olharam com reprovação, ainda que jurasse a eles que era ali que a escada estava. Hannah, com seu jeito bruto, já me acusou de ser louco e disse que eu estava cego pela minha ambição e que não tinha escada naquele local. Sophie tentou acalmá-la e me perguntou se eu tinha certeza de que era realmente ali o túmulo de Dioniso. 

Tínhamos perdido as esperanças de te salvar, meu filho, quando Ariel disse: "Esperem, afastem-se!" e puxou um dos tijolos que fazia parte do túmulo. Um barulho de engrenagem e pedra raspando em pedra abriu uma passagem para a  escada que descia a partir do túmulo.

 

Capítulo 5

De frente à escada, todos se entreolharam e demos início a uma discussão para ver quem desceria primeiro. Darov se pôs na frente e disse que era ele quem deveria descer primeiro, afirmando ser o mais forte e que sua armadura servir-lhe-ia como proteção. Hannah, ao escutá-lo, esbravejou dizendo que não precisava de força para puxar o gatilho e acabar com a armadura dele. Guilien disse que tinha vários elixires e estava pronto para qualquer contratempo. Sophie anunciou que tinha a proteção de seu deus Ezra e que nada de mal poderia lhe acontecer. Clave disse que já era um desgraçado e que sua morte seria uma salvação para ele.  Sarah  contou que havia sonhado que se sairia bem da empreitada e que era ela que deveria descer, porém Ian não permitiu, fazendo seu papel de irmão super protetor. Vendo aquilo, eu andei em direção da escada, pois se alguém tivesse que correr o risco, esse alguém deveria ser eu, já que era por minha culpa que todos estavam ali. Antes de chegar na escada, Ariel pôs sua mão em meu ombro e falou que a mais indicada para descer era ela, que havia sido treinada para desarmar armadilhas e caminhar pelas sombras em silêncio. A princípio, todos discordaram. Um tanto aborrecida, Ariel, tomou as rédeas da situação, demonstrando toda a sua habilidade e sabedoria, afirmando não ser mais aquela criança ingênua que todos se preocupavam em proteger. Diferente de antes, ela agora é uma adulta e sabe se cuidar só.

Depois de uma longa discussão ficou decidido que Ariel desceria e se não retornasse após uma hora, desceríamos todos para resgatá-la. Ela desceu a escada  para dentro da escuridão levando apenas  sua espada e sua coragem. Após quinze minutos, Darov já queria descer, dizendo que provavelmente Ariel tinha sido capturada. Sarah e Sophie tiveram que acalmá-lo. Uma hora depois, vimos vindo da tumba uma luz. Ariel não tinha levado tocha alguma consigo. Darov se posicionou atrás da tumba com sua espada atrás da cabeça, pronto para desferir um golpe que seria mortal, para a maioria das pessoas que caminham na terra. Guilien pegou um dos seus frascos contendo uma substância azul, segurou a rolha que o fechava e o aproximou de sua boca. Clave segurava seus dois machados de mão,  cruzados na altura do peito em posição de combate. Ian mexia sua adaga com grande habilidade, fazendo com que se parecesse que a adaga estivesse dançando em sua mão. Hanna sacou sua arma e apontou para o túmulo, fechando um dos olhos para fazer a mira. Sophie revelou uma maça que ela trazia por baixo de seu manto, que usava só em momentos onde não pudesse evitar a violência. Sarah puxou uma faca e entoou uma canção em sussurro, alguma espécie de feitiço dos ciganos acredito. Eu, meu filho, na verdade, não sabia o que fazer. Apenas fiquei apavorado, me protegendo atrás de Darov.

A luz foi se aproximando cada vez mais e vimos a pequena Ariel, que trazia com ela uma tocha. Todos suspiraram um suspiro de alívio. Ariel então relatou o que tinha visto. Ela disse que desceu, estava escuro demais e ela caminhou por um bom tempo sem encontrar nada. Quase desistindo e retornando, escutou um grito de dor, que a fez continuar a exploração. Andou por mais um tempo tateando a parede e se guiando pelos gritos. De repente, se deparou com algumas tochas à sua frente, que iam iluminando o corredor. Ela seguiu,  apagando-as todas para que a luz não a denunciasse para os inimigos. Continuou progredindo até chegar em uma sala, onde foi obrigada a se deter na porta. Afirmou ter visto você e disse também que haviam quinze mortos-vivos te torturando, todos armados com adagas longas e curvas que mais pareciam espadas. Quando ela falou isso, logo ressoou em minha mente aquela risada diabólica. Ariel, então, retornou,  reconhecendo que não conseguiria vencer todos os inimigos. Antes, porém, teve a idéia de pegar uma das tochas para voltar mais rápido até a escada.

Decidimos descer e te resgatar, filho. Fomos em fila indiana, com Darov a frente e Ariel logo atrás dele para guiar-nos até a sala, já que aqueles túneis pareciam um labirinto, com uma infinidade de caminhos diferentes. Estava muito escuro. Caminhamos por cerca de vinte minutos até escutarmos seus gritos. Seus gritos, meu filho, eram gritos de dor, de desespero, de agonia, que me atingiam o coração como se fosse o chumbo que saí da arma de Hannah. Andamos por mais um tempo e Ariel disse que já estávamos chegando. Mais uns cem metros e vimos luzes de tochas saindo de uma porta. Conseguimos chegar até a porta e observar antes de nossos inimigos perceberem nossa presença. Essa foi a pior visão que já tive em toda minha vida, filho. Você estava acorrentado, no centro de uma sala circular iluminada por tochas.  Quinze malditos mortos-vivos se revezavam para te torturar e perguntar onde estava o amuleto da morte e da vida. Foi nesse momento que me amaldiçoei, quando vi seu rosto retorcendo de dor no momento em que um daqueles monstros encostou sua adaga em seu braço e abriu um corte que se estendia por todo seu antebraço. Isso foi demais para todos nós!

Com o grito de "Atacar!!" de Darov, todos correram na direção dos monstros, lutando bravamente e demostrando grande coragem e habilidade. Lembro de ver Darov cortar um dos monstros ao meio. Guilien, logo que entrou, sacou um frasco com um líquido vermelho, tomou e apontou a mão para uma das criaturas e de um de seus dedos, saiu uma energia azul que foi  na direção da cabeça do morto vivo. Clave matou pelo menos três monstros. Ele tem uma grande habilidade com os machados, ora atacando com os dois juntos, ora com apenas um. Sophie puxou o amuleto de Ezra e gritou para os monstros se afastarem e uma energia branca fez o símbolo do deus brilhar. Os monstros pareciam aterrorizado ao olhar para o amuleto. Sarah a mão me recordo de vê-la lançar um feitiço em um dos mortos-vivos que iria atacar Ian, o monstro titubeou.  Foi tempo o bastante para que Ian cravasse sua adaga entre os olhos dele. Ian luta como que se estivesse dançando uma dança mortal para seus inimigos.  Ariel,  logo que entrou na sala, sumiu da visão de todos. Pensei que havia fugido do combate, o que seria perfeitamente compreendido, já que ela já tinha feito seu papel se arriscando para nos levar até a maldita sala onde te torturavam. Porém, pude enxergá-la saindo das sombras e enfiando sua espada curta nas costas de uma das criaturas. Só restava um inimigo. Encaminhando-se a você, disse com aquela voz que nunca vou me esquecer, que se alguém desse mais um passo, ele rasgaria sua garganta com a adaga. Foi então que escutei um barulho ensurdecedor, que vinha do meu lado esquerdo e que foi capaz de me deixar consideravelmente tonto. Olhei e vi a arma de Hannah ainda expelindo fumaça pelo cano. O tiro dela acertou a cabeça do último monstro.

Libertamos você e retornamos para nossa casa. 

 

Capítulo 6

No mesmo dia, reuni todos na sala e entreguei o amuleto da morte e da vida para eles. Clave disse que conhecia um monge que vivia em Lamordia e que fazia parte de uma sociedade que cuida de itens amaldiçoados. Ele havia conhecido esse monge há muito tempo. Haviam lhe dito que ele seria capaz de curar sua maldição, porém, sua tentativa não teve êxito. Clave disse que ele era um homem bom e que se o encontrasse, certamente ele teria prazer em ajudar. Ian disse que o nome da sociedade que cuida desses itens é "Os guardiões".

Eu os avisei que provavelmente essa maldita seita de mortos-vivos iria atrás deles e que eles correriam risco de vida. Mas isso não amedrontou a nenhum deles.

O grupo partiu há quatro dias, levando cada um, um cavalo e suprimentos necessários para uma semana. Espero que estejam bem.

Meu filho, estou orgulhoso de seus amigos. Todos são homens e mulheres de grande coragem e com uma honesta bondade invejável. Não vejo a hora de você levantar dessa cama e se juntar a eles.

O que, meu filho!!? Você mexeu a mão!!?

 


Dedico esse conto à Luciana, minha namorada, que sem sua paciência, revisão e carinho, esse texto nunca teria sido concluído. Te amo Lu.

 

Thiago “Cabello” Ribeiro