Tudo Muda

 

Um conto em seis partes - que na verdade são sete e um anexo. O prelúdio desse conto é a abertura da Introdução do nosso livro Arcádia: NeoKosmos, onde conhecemos a nossa querida personagem principal. E aquele que rouba a cena da protagonista, o famigerado manuscrito, faz parte do capítulo Arcádia do mesmo livro.
Esses contos foram publicados no RedeRPG, e a versão abaixo foi revisada para uma boa continuidade e em nome da gramática.


I

- Eu nunca poderia imaginar que algo pelo qual sonhei por tanto tempo, pelo qual esperei ansiosamente - e que com muito sacrifício consegui - pudesse mudar tanto minha vida. Eu achei que estava preparada para conhecer a Grécia, que veria todos aqueles monumentos, estudaria bastante, mas que essencialmente eu voltaria sendo a mesma pessoa, voltaria para o meu cotidiano mundano que tantas vezes odiei, e que agora tenho como uma lembrança. Talvez até agradável.

Não consigo realmente julgar se as coisas mudaram para pior ou para melhor. Elas simplesmente mudaram, e, como toda mudança, trouxe consigo seus traumas, sua onda de destruição que levou pra longe aquilo que eu conhecia, e substituiu por algo novo. É necessário que eu sempre me lembre disso, porque eu estou achando que não vai ter "contrôu zê" nesse caso. Tudo mudou, como as estações que mudam a cada ano.

Talvez eu esteja me adiantando. Sempre tive bastante problema ao contar as coisas de forma linear, na verdade acho que toda mulher é assim. Pra que me submeter a essa mania por ordem cronológica típica do sexo masculino? Não é muito melhor contar as coisas por ordem de importância? Ordenar? Ordene quem lê. Humpf.

Bem, indo do começo, aquele dia fatídico, em que essas páginas caíram do livro e eu conheci seu conteúdo. Quando perguntei ao francês o que eram aquelas páginas que caíram do livro, ele me disse que nunca as tinha visto, que havia mexido naquele livro uma semana antes e elas não estavam lá, então fiquei com elas. Terminei minha viagem, fiz minhas pesquisas, me diverti muito e de um outro modo teria sido uma experiência fantástica, nem dei muita bola.

No avião, acordei quando estava no meio do Atlântico. Lembrei das páginas, que estavam na minha bagagem de mão. Por que não? Peguei-as, e comecei a ler.

Voltei a São Paulo com aquelas páginas, e cada vez que lembrava do que havia escrito tinha vontade de gargalhar. Era uma fantasia, uma espécie de conto, que começava interessante, mas que depois entrava numa completa viagem de ácido, passava por umas partes que eu simplesmente não entendia. Não entendo até hoje muito bem. Mas realmente prendia a atenção.

Durante um tempo esqueci delas. Naquele furor de passar as fotos para o computador, enviar para os amigos, levar as encomendas do Free Shop, não tive tempo de pensar naquelas páginas malucas, e talvez se as tivesse esquecido, se tivesse jogado na gaveta talvez eu agora estaria lá, trabalhando, escrevendo minha tese, vivendo.

Anteontem lembrei delas, e ri. Levei-as para o trabalho para tirar fotocópias e mandar para os amigos, mas não saiu nada nas folhas. Achei que talvez não tivesse contraste suficiente para sair na cópia, mas por alguma razão eu estava determinada a fazer aquela doideira circular.

Cheguei em casa e me pus a digitar. Até que foi rápido, logo tinha tudo bonitinho, em fonte 12 e com espaçamento duplo. Loguei na Internet, fiz um e-mail com uma mensagem legal pros meus amigos e anexei. Senti um frio na barriga antes de apertar o "enviar". Naquele momento, selei meu destino.

Foi nessa madrugada que tudo começou, que a minha visão de mundo distorceu e se aproximou mais daquilo que estava nas páginas do que a vidinha que eu conhecia. Doce vidinha pacata e rotineira, chata e simplória, onde eu apenas desejava ter mais emoção, mais aventura. Cuidado com o que deseja?

Eu saí de casa ontem de noite para ir dançar, e, quando percebi, estava no elevador com o manuscrito na mão. Minhas amigas já estavam me esperando no carro, então simplesmente fui encontrá-las, e deixei as páginas largadas no carro.

Quando voltei, vi que meu apartamento tinha sido arrombado. Encontrei a porta aberta e a luz acesa. Agora pensando, vejo que foi uma imensa besteira ter entrado, afinal os bandidos podiam estar ali ainda. Mas não havia mais ninguém, e teria sido muito melhor se fossem apenas bandidos que tivessem invadido.

Estava tudo revirado, e, é claro, eu dei uma choradinha. Quando fui pegar o telefone - para ligar para a polícia - ele tocou. Atendi, e veio a voz que me disse:

"É melhor você entregar. Pro seu bem."

Era a voz do Carlos. Amigo da Márcia. Mas tinha uma entonação diferente, mas que ao mesmo tempo, de algum jeito, me parecia ser finalmente o "verdadeiro" Carlos. Eu sempre achei que ele soava um tanto falso, às vezes. Muito sinistro, me dava arrepios. E agora aquela mensagem. O que ele queria?

Gritei no telefone, querendo saber exatamente o que queriam que eu entregasse, mas então olhei pras minhas mãos, as páginas ali. Pela porta aberta, ouvi aquele clique do elevador de quando apertam o botão do andar, significando que alguém estava subindo para o meu andar. Simplesmente não pensei, meu corpo reagiu e minha mente era apenas uma expectadora. Larguei o telefone, e desci correndo pelas escadas.

Eu já vi filmes de ação o suficiente na vida. Se aquilo tudo não era uma paranóia delirante da minha cabeça, quem quer que estivesse atrás de mim deveria ter deixado alguém na rua vigiando, para ver se eu não escapava. Dobrei as páginas e as coloquei por dentro da minha camisa. Comecei a pensar melhor. Se eram as páginas que eles queriam, eu devia ter largado elas lá, não é mesmo? Pensei em deixá-las ali no chão do elevador, mas por algum motivo não fiz isso.

Na garagem do mezanino parei. Era por aqui que tinha que sair. Como eu não tenho carro eu passava pouco por ali, mas todas as vezes imaginava como deveria ser fantástico se eu morasse ali naquele prédio quando criança. Da murada do mezanino dava pra pular pro muro do prédio vizinho, e dali pro chão, devia ser o máximo para brincar de esconde-esconde.

Subindo na murada, vi que crianças às vezes pensam coisas muito idiotas. A maioria deve ter pensado como eu, mas quando viu a distância real entre a murada e o muro deve ter desistido. Mas eu não podia me dar esse luxo. Saltei, e, por sorte, estava usando tênis e não sapatos. Consegui me manter de pé em cima do muro e fui andando por ele, passei por uma câmera de segurança que provavelmente estava sendo assistida por um porteiro sonolento, desci e sai pela porta da frente, como se fosse uma visita tardia indo embora, pelo outro lado do quarteirão.

E agora? O que eu deveria fazer?


II

É nessas horas que a gente põe a mão na consciência.

Que diabos eu tinha acabado de fazer? Cheguei em casa e encontrei meu apartamento arrombado. E ao invés de ligar pra polícia imediatamente, entrei. Aí, quando finalmente decidi fazer o certo, recebi um telefonema que, pra falar a verdade, já nem tinha certeza se tinha sido aquilo mesmo. Talvez fosse minha imaginação, eriçada por causa do roubo. Vai ver que aquele barulho do elevador nem rolou também. Naquela hora, em que a adrenalina ia embora depois do salto - uma estripulia que podia ter me rendido um osso quebrado ou pior - e da fuga, minhas pernas começaram a tremer.

Tremer é um dos eufemismos mais escandalosos que eu já usei na vida. Eu praticamente não conseguia ficar de pé. Apoiei-me em um muro com a mão, e comecei a sentir meu estômago revirar, uma baita vontade de vomitar. Eu devia voltar.

Mas eu já me ferrei muito na vida por não agir de acordo com esses instintos. Eram quase quatro horas da manhã, não custava nada esperar amanhecer pra voltar. Mas ficar duas horas ali na rua era péssimo. E era sacanagem ligar pra a Marina, ela já devia estar chegando na casa dela e ia provavelmente rir da minha cara. Pensei em pegar um táxi pra algum lugar 24 horas, tomar um café, sei lá.

Enfim, tinha um carro no ponto. Dei duas batidinhas no vidro pra acordar o cara, subi no banco de trás e disse pra ele pra onde queria ir. Olhei na bolsa e conferi se tinha dinheiro, senão ia ser um papelão federal, né? Tinha uma notinha de cinqüenta, beleza.

Não vi quanto tempo ele rodou, perdida que estava nos meus pensamentos e em minhas dúvidas sobre o que eu tinha acabado de fazer. Dúvidas que estavam prestes a se dissipar.

Parados em um semáforo, veio um cara do nada pelo lado direito e abriu a porta do passageiro. Eu deveria ter gritado algo como "moço, acelera!", mas eu sou uma pata, não consegui nem reagir, não até o desconhecido entrar, sentar, fechar a porta, falar para o motorista "continue." e se virar para mim.

Ele olhou de um jeito que parecia que eu ia pegar fogo. Tinha uns cinqüenta anos, meio careca e sem barba, uma boca que não ficava totalmente fechada e dentes amarelados por café e cigarro. Tinha um cheiro esquisito. Mas olhos castanhos muito bonitos.

"S-senhor, esse táxi é meu." eu disse.

"Eu sei muito bem," ele respondeu, "mas eu o quis para mim. E tem outra coisa sua que eu quero."

O táxi subiu a rampa de acesso para o Minhocão, o que era muito estranho, já que de madrugada o elevado fica fechado - senão, coitados dos que moram naqueles prédios - enquanto o careca esperava que eu respondesse alguma coisa. Eu não conseguia falar nada, e o motorista nem abria a boca.

"Eu quero as páginas. As que você achou."

As páginas, ele disse. Aquelas porcarias de páginas que estavam enfiadas dentro da minha blusa. Notei que o táxi acelerava bastante, o motor roncava.

"Eu sei que elas estão com você. E por bem ou por mal, duas coisas vão acontecer. Você vai me entregá-las, e você vai descer deste carro. A diferença é que se for por bem, o carro vai estar parado quando você descer."

Minhas mãos tatearam o cinto de segurança e o encontraram. Não sei como, consegui fechá-lo na primeira tentativa.

"ENTREGUE-AS, SUA MUNDANA ESTÚPIDA!"

O grito dele fez as janelas fechadas tremerem. O taxista continuava calado. Meus joelhos também tremiam. Meus dentes estavam batendo incontrolavelmente. Eu pus a mão por baixo da blusa, e em contato com a minha barriga pude constatar como estava fria e molhada de suor. Eu não conseguia tirar os olhos daquela face colérica na minha frente, e fui subindo a mão rumo às páginas coladas no meu peito.

Quando meus dedos roçaram as folhas, comecei a abstrair daquela situação. Pensava no que aquele homem queria com aquelas coisas doidas que estavam escritas ali. Sobre mundos estranhos e instigantes, atraentes, maravilhosos, tão melhores que aquela realidade dura e fria onde não é seguro nem pegar um táxi para ir tomar um café, onde seu apartamento pode ser assaltado a qualquer momento, onde você tem um trabalho maçante que em nada lembra o glamour que você acreditava que teria na faculdade, um trabalho que perde de longe para suas outras atividades que são tão mais gratificantes que nem dá pra comparar, mas que você tem que dispensar pelo trabalho para poder pagar as porcarias das contas, contas idiotas que são ou da comida, da luz e do abrigo que sustenta essa sua vidinha chula ou do que você faz para tentar preencher os vazios dela com uma sombra de diversão, ou o que quer que você chame aquilo que você faz quando passa a maior parte do tempo longe dos amigos. Como isso não é aquilo que você quis quando era criança. O que mudou? Que você não é mais criança? Ou que você resolveu se conformar? Você não, eu. Aquele texto, ou o que eu entendi dele, falava que tudo depende da imaginação, não? Porque então quando eu imaginava uma vida com meus amigos, com aquilo que eu gosto de fazer, com felicidade, ela não virava realidade? O que precisava mudar? Provavelmente eu.

Os lábios dele estavam se mexendo, mas eu nem ouvia mais as palavras. Eu ouvia cada bobagem que eu já tive que ouvir de clientes, de colegas ou de chefes. Cada desculpa esfarrapada de um namorado que já me dispensou como seu eu fosse um pedaço de carne podre, cada cantada idiota de bêbados nos bares onde eu ia toda Quinta-feira em vão achando que ia encontrar o homem da minha vida. Minha mão, dentro da blusa, já estava cravando os dedos na pele, ainda bem que eu não tenho unha comprida.

Aquele babaca na minha frente, com seu bafo de urina e cara de quem comeu e não gostou, era a vida que eu tinha, com apenas os dois olhos representando o que era de bom e bonito e gostoso de se ver, as partes mais importantes e mais significativas, mas tão pouco em relação ao todo... e o que eu não gosto, precisava mudar.

Quando minha mão saiu da blusa, não trazia as páginas não. Ela veio fechada em um punho, e eu coloquei cada miligrama de raiva reprimida que eu já tinha sentido na vida num murro direcionado para aquele nariz de anta.

Bem, como eu falei, eu era, eu sou uma pata. Não consegui acertar o cara, e acho que se tivesse acertado com aquela força teria quebrado meus dedos. Ele se contorceu pra trás desajeitadamente tentando desviar - acho que ele também não era muito menos pato que eu não. Ele, no seu afobo, esbarrou no volante, quase nada, mas suficiente para fazer um carro a mais de 100 por hora desviar.

O táxi rodou e bateu na mureta que divide as duas pistas. Eu fechei os olhos e coloquei as mãos por cima da cabeça enquanto o carro capotava. Senti o meu mundo girar, mudar, revolucionar, com a mesma violência do corpo de um cara de setenta quilos sem cinto de segurança estilhaçando um vidro e sendo arremessado pra fora.

De repente tudo parou. Abri os olhos.

O carro estava atravessado no meio do Minhocão. Vapor saía do capô amassado, e lascas de vidro cobriam tudo por dentro. Eu tinha alguns arranhões nos braços e minha cabeça estava doendo horrores, mas nada muito grave. O motorista tinha a cabeça baixa, e toquei no ombro dele perguntando se ele estava bem.

Para minha surpresa, saiu uma barata de dentro do ouvido dele. Eu nem consegui gritar, e mais duas saíram da boca. Eu soltei o cinto e me encostei na porta, que abriu só com o meu peso, e eu caí no asfalto. O carro estava destruído. Dez metros mais pra frente, tinha algo que parecia ser o cara careca.

Eu olhei para os prédios, e vi que começavam a sair pessoas pela janela. Alguém iria pedir pro socorro vir. Eu iria é descer a rampa, acho que estava na altura da Santa Cecília, e ficar o mais longe que pudesse daquela cena.


III

Eu já falei o quanto eu simplesmente odeio (ou odiava, sei lá qual é o tempo verbal apropriado agora) isso?

Bem, o fato é que eu odeio/odiava essa sensação de sentir-se entrando em "modo automático", quando as reações fluem naturalmente, não dependendo de seus pensamentos conscientes, quando tudo que você faz é assistir a você mesma agir, como se estivesse em um jogo de computador em primeira pessoa.

Esse ódio não tem nada a ver com a sensação de perder o controle, nem nenhuma nóia parecida. Na verdade tem muito mais a ver com uma vergonha, a de admitir que eu sou muito melhor quando isso acontece.

Quando eu entro no automático, eu sou tão MELHOR que o meu eu natural... Sempre digo e faço as coisas certas, não o que eu acho que sejam as mais certas necessariamente, mas o que qualquer pessoa com bom senso acharia que é o certo. É esse eu que raramente - ainda bem - toma - ou tomava - conta, que assumia o meu lugar quando entrava em uma discussão acirrada no trabalho, quando tinha um problema "daqueles"...

E é muito ruim isso, achar que não se tem capacidade para resolver aqueles problemas que são realmente desafios da vida, de depender a sua salvação de um alguém que não é você - mesmo sendo você mesma. É a sensação como se estivesse olhando as respostas das palavras cruzadas na última página, colar na prova, aqueles pequenos delitos que ninguém fica sabendo a não ser você, a quem acaba sendo atribuída um mérito imerecido.

Obviamente, isso é uma completa loucura, já que esse alguém SOU eu. Ou pelo menos isso é o que eu acabo admitindo para as amigas com quem eu converso sobre esse meu desvio psicológico. Talvez eu até realmente pensasse que era. Mas agora sei que não sou. Eu não sou capaz de fazer as coisas que ela faz. Se fosse eu, estaria sentada na sarjeta chorando e me descabelando. Graças a ela, comandando a ação, que eu estava lá, correndo, às quatro da madrugada pela Amaral Gurgel, em meio ao melhor que a Grande São Paulo tem pra oferecer numa Quinta-feira.

Enquanto aquelas pessoas que eu não conseguia bem definir se eram homens ou mulheres me encaravam, comecei a tentar pescar o controle. Ela relutava e dizia não. Dizia que eu era a idiota que quase tinha nos matado, tentando dar um soco no cara careca. Dizia pra deixar tudo com ela que nós ficaríamos bem.

Não, disse eu. Minha vida estava mudando. E eu não podia mais enfiar a cabeça no buraco como um avestruz, enquanto o piloto automático me levava pra casa em segurança. Não, eu estava aprendendo algo naquela noite, e não podia desperdiçar, deixar esse trem sair da estação e me largar na plataforma esperando a próxima vez de olhar um chegando e pensar "nesse eu vou". Era agora.

As páginas falavam alguma coisa sobre esse poder pessoal. Lentamente pude me sentir de novo controlando minhas ações, diminuindo o passo. Um pouco melhor que o normal. Aliás, me sentindo ótima. Os arranhões nos braços davam leves fisgadas que aguçavam meus sentidos. Eu nunca havia estado assim de bem comigo. As páginas, ainda dentro da minha blusa, ficavam mais próximas e aconchegantes a cada inspiração. Sentia minhas mãos quentes, como se prestes a inflamar-se, disparar jatos de chama da ponta dos meus dedos contra qualquer um que quisesse me causar mal, como se eu fosse uma adolescente feiticeira de um livro infanto-juvenil.

Foi nessa hora, parada numa esquina, que me dei conta dos três carros parando na minha frente, e dos homens descendo deles...


IV

Eu não senti medo quando vi os carros parando. Eu cheguei até mesmo a sorrir vendo aquelas pessoas descerem dos carros, confiantes de que iriam ter o que queriam. Mas eu estava mais confiante. Como no final daquele filme de faroeste, quando o Clint Eastwood reencontra o seu verdadeiro eu, invade o bar e mata o Gene Hackman e mais um monte de gente.

Estava perdida nestes meus pensamentos de glória e perdi as primeiras palavras que o cara disse. Só então olhei para ele, jovem, bem vestido.

"...diferentes dos outros. Nós não queremos te machucar. Nós só queremos as páginas. Entregue-as, e nunca mais vai ouvir falar de nós."

Uma moça que estava atrás dele continuou:

"E você não vai sair de mãos abanando. Se concordar em entregar as páginas pacificamente, vai encontrar sua conta amanhã substancialmente mais gorda."

"Você não precisará trabalhar de novo nunca mais."

Hmm. Não posso dizer que a proposta não era tentadora. Quem quer que tenha dito que dinheiro não traz felicidade não tinha muita imaginação pra saber onde gastar. Ou esqueceu de mencionar que a falta de dinheiro traz muita infelicidade. Devia ser um idiota.

E eu, naquela hora, tomada pela mesmíssima idiotice. Minhas mãos, antes quentes, agora estavam fumegantes, os dedos latejando, dava para sentir o sangue pulsando por debaixo das unhas. Joguei os cabelos para trás com um movimento de cabeça, algo para causar aquele efeito hollywoodiano na cena, e disse jocosamente:

"EU não quero machucar vocês. Talvez seja melhor vocês entrarem nos seus carros..."

No meio da sentença, vi que eles não estavam sendo intimidados. Dois deles começaram a vir na minha direção. A língua começou a falhar.

"... n-não se atrevam a me erh, me desafiar. Parem!"

Achei que era a hora de parar de falar. Estiquei os braços e estendi as mãos, esperando que ondas de chama, gelo e eletricidade saltassem dos meus dedos para neutralizar o bando de atacantes.

-

É óbvio. É claro que não aconteceu nada. Eu fiquei ali, com as mãos à frente como uma perfeita panaca, com os olhos fechados, com o pânico tomando conta frente ao choque duro da realidade contra minha recém adquirida fantasia de feiticeira.

"Ah ah ah ah ah! Por favor, repita isso! Alguém pegue a câmera digital no porta-luvas, precisamos gravar isso!"

"Garota tola. Acha que é assim que funciona?"

"Ha. Vamos matá-la. Seria piedade, poupá-la-ia de uma vida de humilhações por sua estupidez."

OK, agora eu estava encrencada. Acabaram de me ameaçar, minha cabeça estava a mil, e eu não conseguia acreditar que um cara que realmente usou uma mesóclise numa frase falada seria o responsável pela minha morte. Toda a coragem que eu havia adquirido nos últimos minutos fugiu, e eu caí sentada no chão, meus joelhos não conseguiam mais me sustentar.

Pedi arrego. Pedi para a minha outra eu, aquela, para assumir. Ela iria saber o que fazer. Implorava por aquela coisa que sempre odiei, e não fui atendida. Não funcionava agora que eu havia reconhecido a minha esquizofrenia e me convencido de que não havia "outra eu", só eu mesma. E, provavelmente, dentro em pouco não haveria mais nenhuma.

O rapaz se aproximou. Eu comecei a chorar, ia pedir para ele não me matar, mas a voz não saía. Nem implorar eu conseguia sozinha. Cobri a cabeça com os braços, mas ele pegou cada um com uma mão e me pôs de pé. Me segurou pelos braços e chegou com seu rosto bem perto do meu. Ele tinha o mesmo bafo fedido que o cara careca. Esse povo não escova o dente não?

"Entregue as páginas."

Meu último resquício de coragem. Só para não dizer que morri como uma covarde. Disse, surpreendentemente sem gaguejar, exatamente onde ele deveria enfiar as páginas. Aí ele cuspiu em mim.

Não, não cuspiu, eu só pensei na hora que ele tinha cuspido. Ele do nada caiu no chão como se fosse um saco de batatas, e eu passei a mão na cara e vi que aquilo não era cuspe, era sangue, que havia espirrado do enorme buraco que tinha na cabeça dele agora.

Olhei pra frente e vi as pessoas que estavam me cercando ou tentando enfiar a mão dentro das jaquetas ou correndo para os carros. Enquanto isso, os estampidos ritmados vinham da direção de onde uma figura esguia estava. A cada estampido, um de meus atacantes caía.

Foi só então que eu percebi que era uma mulher, armada com duas pistolas, atirando. Ela não tinha pressa, dava um passo, mirava e atirava com precisão.

Eu me abaixei novamente, e cobri a cabeça. Mais alguns tiros e então ouvi apenas passos, vindo na minha direção, e uma voz, estranhamente familiar, me disse, tocando no meu ombro:

"Venha. Precisamos sair daqui."

Quando levantei, minha salvadora já estava de costas, me puxando pela mão na direção de um dos carros. Ela me empurrou pra dentro do banco do passageiro e bateu a porta, dando a volta para ir para o banco do motorista. Neste meio segundo, me ocorreu que eu não tinha absolutamente NENHUM motivo pra confiar naquela dona, e que eu devia trancar a porta, pular pro banco do motorista e sair acelerando dali.

Mas é claro que quando eu pensei nisso ela já estava entrando. Então só iria falar pra ela que...

As palavras me faltaram quando olhei para o rosto dela.

Era... EU.


V

Sinceramente, deu até um alívio na hora. Isso porque, apesar de tudo de ruim e esquisito que havia acontecido até ali, em nenhum momento eu duvidei de que era realidade, nem por um segundo. Mas, naquela hora, vendo eu mesma me salvando de um monte de caras maus e saindo a toda em um carro roubado, foi o ponto em que só havia duas alternativas. Ou eu estava sonhando, ou estava doida.

Claro que foi mais confortável achar que estava sonhando, então relaxei no banco e sorri, esperando tudo se dispersar com o barulho estridente do meu rádio-relógio me trazendo de volta pra vida mundana, para pão, manteiga e iogurte de banana, ônibus, trabalho...

Mas então eu fui rudemente acordada de meu devaneio pelo súbito encontro da minha cabeça com o teto do carro. Fiquei zonza por alguns segundos enquanto o carro voltava para o chão. Havíamos passado por cima de uma lombada a toda velocidade.

"Desculpa, desculpa" disse a outra eu, segurando o volante com mais força. Ela mordia o lábio, como eu faço quando estou nervosa. OK, então eu não estava sonhando. Portanto, alternativa B.

Olhei para ela. Indiscutivelmente era eu. O cabelo era um pouco mais curto, do jeito que eu quis cortar uma vez e o meu cabeleireiro não deixou (pff). Mas o resto era igual, até o jeito que ela franzia a testa enquanto dirigia. Não é todo dia que se vive uma experiência esquizofrênica em tempo real, ao vivo e a cores. Pensei em tudo que eu poderia perguntar ao meu outro eu, e não conseguia me decidir entre perguntar algo metafísico no nível do sentido da vida, ou se perguntava se ela lembrava onde eu (nós?) havia guardado aquela blusa roxa com cordinha de amarrar. Mas talvez tivesse algo um pouco mais importante.

"Estamos indo para onde?" - havíamos acabado de entrar na Consolação e subíamos em direção à Paulista.

"É... não sei."

"Como assim não sabe?"

"Não sabendo. Pra onde você quer ir?"

"Então espera aí, você está dirigindo a esmo?"

"Hhh. Eu sou um pouco impulsiva demais, eu faço as coisas mas não penso nem nas conseqüências nem nos objetivos. É uma droga. Você tem razão, vamos parar"

"Não, não precisa parar. Só diminui a velocidade, pra gente não chamar a atenção de algum guarda."

"Beleza."

Definitivamente, alternativa B. Eu estava conversando comigo mesma como se estivesse num boteco, não como se eu tivesse acabado de ver meia dúzia de pessoas levar tiros.

"Desculpe por ter metido a gente nessa." Ela disse.

"Como assim?"

"Como eu falei, eu faço as coisas sem pensar. Não devia ter digitado aquele texto e enviado o e-mail, foi uma bobagem que deu nisso tudo."

"Ei, fui eu quem enviou o e-mail."

"Claro que foi você. Mas era eu. Eu que de repente tenho esses ímpetos de fazer algo que nos mete em enrascadas. Que fiz a gente ir atrás de garotos que não valiam a pena, que fez a gente xingar quem não devia ser xingado. Se eu só ficasse quieta no meu canto a nossa vida seria muito mais fácil. Você cuida de nós muito melhor do que eu."

Eu poderia apostar que se Freud estivesse ali, estaria botando as tripas pra fora de tanto dar risada.

"Isso é um absurdo. Pra começar, eu não sei atirar, não sei onde arrumar uma arma, e não dirijo tão bem assim. Segundo, dizer que eu cuido bem de mim é uma completa falácia. Quem é você, de verdade?"

"Eu sou nós. Você é nós. Aquela que me mantém sentada no cantinho olhando pra parede também é nós. Você não sabe atirar, não sabe onde arrumar uma arma e não dirige bem, mas o potencial para isso está dentro de você, porque isso você quer. E isso você pode, se realmente precisa."

"Isso é uma coisa muito idiota que você está falando."

"Eu? Mas quem acabou de falar foi você."

Era verdade. A última sentença não havia sido ela quem falou, havia sido eu mesma, vociferando as palavras sem nenhum controle. Eu podia apostar um milhão de reais na opção B naquela hora.

"Eu enlouqueci, não?"

"Pelo contrário. Você está mais sã do que nunca. Você está aceitando o que você é, e as coisas que estão mudando. Isso é sanidade. Loucura é resistir à mudança, ao inevitável e novo. Isso é o que aqueles caras que estão atrás das páginas querem. Eles têm medo de mudar, de que aquilo que eles acreditaram durante anos e anos subitamente não seja mais verdade."

"Então você é mesmo parte de mim?"

"Sim. Eu sei que você não gosta quando eu assumo, quando eu faço você fazer alguma bobagem no momento. Eu peço desculpas por isso."

"Não se desculpe. Eu digo que não gosto, mas na verdade se não fosse você aparecer na hora certa, falar e fazer as coisas certas, eu não estaria aqui... mesmo agora, eu provavelmente estaria morta lá atrás."

Ela diminuiu a marcha e o carro parou. Estávamos em cima do viaduto da Dr. Arnaldo por cima da Sumaré, o caminho pra voltar pra casa.

"Bom saber disso. Me faz sentir que eu realmente fui útil antes de ir."

Eu ia perguntar o que ela quis dizer com isso, quando olhei pra barriga dela e vi a mancha vermelha. Provavelmente ela havia sido atingida no meio do tiroteio, e havia conseguido se manter viva de algum jeito até agora.

"Meu Deus, vamos para um hospital! Dá meia volta, o HC está logo ali atrás."

"Não. Não vai adiantar. Eu já fiz o que eu precisava fazer."

"Eu não quero que você morra. Eu preciso de você. Eu preciso que você assuma o controle quando a minha mente se fecha em posição fetal, com medo, solitária. Se não for por você eu não vou conseguir."

Ela colocou a mão ensangüentada no meu rosto e sorriu.

"Claro que vai. Você conseguiu, lá. Não tenha medo de mudar. É preciso morrer para renascer, e o nascimento sempre é uma ocasião festiva. Vai ter outra de nós pra me substituir, mas, por enquanto, você pode fazer o papel de nós duas muito bem. Eu sempre achei que te invejava, mas na verdade, eu sempre te admirei. Vá. Mude. Tudo muda, por que não nós?"

Ela encostou a cabeça no banco e fechou os olhos. Ver o sorriso dela, mesmo morrendo, era estranhamente confortante. Eu tirei as páginas de dentro da blusa, e olhei pra elas.

Saí do carro. Eu sentia vontade de chorar e rir ao mesmo tempo. Eu os vi andando na minha direção e simplesmente não tentei correr, nem mesmo sentir medo. Algo mudou, e eu sabia o que eu tinha que fazer.


VI

Tem aquelas coisas em que realmente é melhor não pensar. Ironicamente, a personificação daquela minha faceta que geralmente fazia essa parte do "não pensar", impulsiva, decisiva; havia acabado de dar seu último suspiro dentro daquele carro. Tinha ficado só essa eu - claro, podia ser que houvesse outras, ainda! - pra lidar com a próxima leva de desconhecidos psicóticos, que já se aproximava.

Mas, sabe como é, não há nada que clareie mais as idéias do que ver você mesma sangrar até a morte com um buraco de bala na barriga. É o tipo de coisa que põe uma perspectiva diferente na sua cabeça. Eu estou acreditando que seja isso que me fez agir daquele jeito, uma última homenagem a ela, sei lá.

O fato é que mais uma vez eles estavam vindo, e eu já estava cansada. O sol estava nascendo, então já fazia mais de duas horas que eu estava nessa. Curioso, em duas horas eu já tinha tido mais emoção do que nos últimos três meses.

Enfim, dessa vez vieram a pé. Acho que não eram os mesmos lá do centro, aliás nem sei se todos os ataques que eu havia sofrido até aquele momento foram obra do mesmo grupo, talvez fosse mais de um que estavam atrás daquelas páginas. Lembrei delas naquela hora, olhei pra elas de novo na minha mão. Eu respirei fundo e me preparei para tentar falar sem gaguejar ou tremer. Aquele seria o meu monólogo final, eu estava preparada para morrer ali. Nessa hora eu só vi vultos, não tinha foco na minha visão, não sei se era algo que eles estavam fazendo ou eu que estava direcionando toda minha atenção e energia para a fala, mesmo.

"Vocês querem isso, não? Podem desfiar o seu rosário de ameaças."

"Não vamos ameaçar você garota. Vamos simplesmente te matar e pegar as páginas. Pra que o traba..."

"Você provavelmente assistiu muuuuuito filme, né? Se sua intenção é simplesmente me matar, por que falar, por que não fazer logo de uma vez? Mas não, não, você quer dar o seu showzinho particular pra mostrar como você é o malvadão mor pros seus amiguinhos. Quer saber, vá se #%$&@.
Na verdade você não passa de uma pessoa patética. Assustada, com medo de mudar. Com tudo que você já deve ter feito, visto e aprendido na vida, provavelmente mais do que eu sou capaz de sonhar que exista, ainda assim tudo que você é é um medroso, que não tem coragem pra encarar que talvez precise aprender as coisas de novo, renovar, arejar as idéias.
Porque isso faria o tempo que você gastou até agora para compreender o mundo, todos os livros e livros que você leu, tudo que aprendeu, obsoleto. Há uma nova verdade agora, e ao invés de gastar o seu tempo para aprendê-la é mais fácil esconde-la, se abraçar à velha como se fosse a última bóia no oceano.
É por causa de gente como você que o mundo é do jeito que é. Você se acha um único, iluminado, inteligente e 'inovador', que sabe o que poucos sabem, que está além da compreensão dos outros. Outros que te julgam sem te conhecer, e em troca você julga sem também conhecer.
Se liga. Tudo que você fez até hoje foi lamber os restos que gente que realmente botou a cabeça pra funcionar deixou pra você. E por causa dessa migalhazinha que te deram na boquinha você se acha o bambambam.
Chegou tarde. Quer você queira, quer não, o que tem aqui dentro dessas páginas já não é mais conhecido só por mim. Se vocês vieram atrás é porque sabem, leram aquele e-mail. O que tem aqui já está dentro de vocês, se enraizando, crescendo.
Outras pessoas também leram. Eu mandei pra muita gente. Provavelmente a maioria não entendeu. Uns riram. Mas se tiver uma só pessoa que tenha compreendido, já vai ser suficiente pra ter feito sua missão um fracasso.
Você falhou. Mesmo que pegue essas páginas agora, não vai adiantar. Já espalhou, como brasas ao vento.
Eu sei que você deve estar espumando de raiva. Só aponta que o meu diagnóstico estava correto. Se você fosse tão bonzão quanto acha que é, já tinha me matado na primeira frase. E agora? O que vai fazer?"

Eu sabia o que fazer. Subi na mureta do viaduto, aquele que os caras usam pra treinar rapel, com a Avenida Sumaré lá embaixo.

"Menina, você não vai se suicidar. Eu vou te matar de um jeito bem doloroso, e vou arrancar as páginas dos seus dedos. OUVIU, GAROTA? EU VOU QUEIMAR SUAS ENTRANHAS E SUA ALMA!"

"Eu sabia que você tinha visto muito filme. Pois bem. Então eu te respondo também com uma frase de filme - na verdade foi Alexandre, o Grande, quem disse isso, mas tudo bem - ..."

Abri os braços e senti o vento que soprava levar meus cabelos. Minha mão esquerda, novamente com aquela sensação de ardência, se fechou com força nas páginas enquanto a direita sentia a brisa. Eu sorri antes de virar a cabeça pra esquerda e olhar fixamente para aquele manuscrito que tinha mudado minha vida.

"...é melhor QUEIMAR do que DESAPARECER!"

Eu deveria ter me espantado na hora, mas foi a coisa mais natural do mundo. Dessa vez aconteceu mesmo. As páginas em minha mão irromperam em chamas, que eu podia sentir o calor mas não queimavam minha pele. O papel, velho, se incendiou imediatamente, e o vento que soprava atiçou brasas. Em menos de dois segundos, elas se desfizeram, os pontos vermelhos e cinzas se espalhando pelo ar, cada um em uma direção.

Eu sei que aquilo não se perdeu no vento. Cada uma daquelas brasinhas deve ter encontrado seu lugar no coração de alguém. É o certo. Eu sei que, normalmente, a vida não costuma ser justa. Mas, às vezes, é.

Bem, mas então, o papel queimou e eu fiquei mega feliz. Mas ainda tinha um bando de caras que queriam me matar e, dada a escolha, eu preferia nem queimar nem desaparecer, mas sim continuar por aí.

Claro que isso não combina com o que eu fiz em seguida. É que, sei lá, parece que eu SABIA, saca? Já que as coisas tinham mudado, já que eu conseguia falar sem gaguejar e brotar fogo das mãos, será que não era o certo a se fazer? Acho que foi.

Deixei meu corpo cair para trás, diante dos olhares embasbacados dos meus supostos algozes. Como uma saltadora olímpica, dei aquela pirueta pra trás e senti o sol nascente brilhando no meu rosto, não quente nem cegante, só agradável.

Lembrei daquele cara que no ano passado encontraram morto no chão da garagem do meu prédio, que disseram ter caído do apê do quarto andar que ele tinha tentado assaltar. Será que a vida passou diante dos olhos dele enquanto ele caía para a morte? Pra mim não passou. Acho que porque eu sabia que não ia morrer.

O asfalto se aproximou rapidamente diante de meus olhos, que só se fecharam no último instante. Mas, ao invés do baque sólido, senti a refrescância do mergulho em água, uma sensação que pra falar a verdade eu não tinha há muito tempo.

Eu mergulhei cerca de uns cinco metros abaixo da superfície. Meu primeiro instinto foi o de tirar o tênis e nadar. Quando emergi, vi que não estava mais em São Paulo. O horizonte era azul, não cinza. Colinas verdejantes estavam no lugar dos prédios, e você estava aqui no lugar dos caras que estavam atrás de mim.

Bem, é isso. Creio que me demorei um pouco demais só para responder um simples "quem é você e o que está fazendo aqui?", mas não seria certo deixar tudo que aconteceu de fora, né? Afinal, já falei, esse é o jeito que eu conto estórias.


Ele franziu a testa. Olhou atentamente para a jovem diante de si, ponderando suas próximas palavras de acordo com o que havia acabado de ouvir.

- Senhorita, escusas, mas pouco compreendi do seu relato. Por deveras suas palavras fizeram referência a lugares que me são desconhecidos, e seu linguajar esteve repleto de expressões cujo significado ignoro. Porém, pude ao menos entender que muitos perigos enfrentou em nome de uma causa que considerou justa, o que para mim basta para que lhe ofereça a mão em ajuda. Escoltá-la-ei à corte de Lorde Oberon, cujos sábios com certeza poderão elucidar melhor sua narrativa. Venha, monte comigo em meu cavalo, pois ainda temos um bom dia de cavalgada pelo Reino da Primavera até chegar ao castelo de meu senhor!

Ela tirou uma mecha de cabelo dos olhos e sorriu - novamente a mesóclise. Pode ser que as coisas tenham mudado, pode ser que elas sempre tenham sido assim. Quem poderia julgar?