A vocação de um cavalheiro

 

Enquanto o sol matinal acariciava gentilmente as velas do Uncharted Course os marinheiros do turno da noite esperavam para serem substituídos e sonhavam com as redes confortáveis que os esperavam no convés inferior.

A figura imponente do primeiro-imediato emergiu de sua cabine, seu semblante contrastando com os outros membros da tripulação que estavam no convés pela aparência descansada. Caminhou pelo tombadilho assegurando-se que tudo estava correndo bem. O Uncharted Course não tinha um capataz; os homens cumpriam seus deveres de boa vontade e sem demora. O homem alto e loiro conduzia sua inspeção por puro hábito, adquirido nos anos em que foi oficial da marinha Montaigne, onde conhecera o comandante mercenário Avalon Philip Gosse.

Seus olhos azuis olharam para o castelo de proa e viram a cena que insistia em se repetir desde que deixaram St. Augustin. Seus dedos se crisparam com raiva, e ele instintivamente buscou o cabo do chicote, mas não o encontrou. Não havia necessidade do ‘gato de nove caudas’ no Uncharted Course. Até hoje.

O capelão do navio se aproximou do imediato, sentindo sua ira e, com esperança de apaziguá-la, começou uma conversa:

“O que lhe aflige, amigo Henry?”

“Ochoa! Bem, é aquele garoto que Phil trouxe com ele de St. Augustin. Olhe para ele! Que audácia ficar ali, imóvel, vendo todos os outros trabalhar e sem mover um dedo para ajudar em nada.”

“Ele não é um marinheiro, Henry. Não sabe nada do mar ou dos navios.”

“Não sabe e não quer aprender também! Veja aquele outro garoto, Gaspar. Quando entrou na marinha conosco não sabia amarrar um simples nó. Em três dias já escalava os cordames e trabalhava nas velas. Agora aquele Torbo, ou qualquer que seja seu nome, fica ali sentado em um rolo de cordas, com a mão no queixo, olhando pro nada! Nem se barbeou nas últimas duas semanas! Só se levanta para comer e para ir dormir, e mais nada! Vou falar com o capitão sobre ele, ah se vou, e vamos largá-lo na primeira ilha do caminho!”

“Meu amigo, está sendo muito duro. Pelo que Phil me disse, ele não trouxe o rapaz para nossa tripulação esperando dele um marinheiro. Ele o trouxe porque viu nele um homem honrado que estava sendo corroído pelo próprio desejo de vingança, e quis ajudá-lo. Você, mais que todos, deveria saber que quando um homem cai em desgraça é muito difícil encontrar de volta o caminho da honra... lembra-se daquele oficial Montaigne, Henry Braudel? Desiludido com a morte da filha tornou-se cruel para com seus homens. Foi servindo com o capitão Philip Gosse, e o seguindo em sua pequena insurreição, que ele encontrou novamente a si mesmo.”

Henry Braudel rosnou por entre os dentes “Eu não preciso ser lembrado disso, padre. Você cumpriu seu papel, saiba que terei paciência com o garoto. Mas ela não é eterna, e é melhor que ele se prove útil a esse navio e sua tripulação, ou o gato vai sair da sacola!”

A audição aguçada do jovem em roupa de couro captou toda a conversa mesmo a dez metros de distância. Pareceu não se importar com nada do que havia ouvido, apenas mudou seu peso para uma posição mais confortável em sua banqueta improvisada e continuou a sonhar acordado.

 


 

“Vela no horizonte!” soou o grito vindo do ‘ninho do corvo’. Gosse puxou sua luneta e apontou a estibordo.

“É um navio mercante Castille!” Disse o capitão. “Todas as velas desfraldadas, quero alcançá-los antes do almoço!” E depois, virando-se para o resto da tripulação: “Senhores, estamos em via de iniciar nossa primeira festa da semana. Oremos para que os porões deste estejam cheios de vinho e não de grãos como o último que pegamos!”

Levou mais de uma hora para que o Uncharted Course chegasse à distância de tiro. Henry estava no convés inferior, dando as ordens para os canhoneiros:

“Dêem um tiro de aviso. Preparem-se para atirar de novo caso eles revidem, chumbo e corrente. Eu estarei no grupo de abordagem, Leville assume o comando daqui.”

Um canhão de doze libras rugiu e cuspiu um projétil que cortou o ar e passou assobiando por cima da popa da nau mercante. A fumaça ainda não havia se dispersado quando um pedaço de tecido branco foi hasteado no mastro principal.

“Eles se renderam!” gritou Gaspar dos cordames.

“Parece que nossa reputação nos precede, rapazes! Eles capitulam sem necessidade de violência, então vamos brindar com eles!” Disse Gosse, alegre.

Em alguns minutos o Uncharted Course cobriu a distância que separava os dois barcos e se emparelhou. Uma dúzia de ganchos saltou do convés do navio de Gosse e se prenderam na amurada Castille. Braços fortes esticaram as cordas e ergueram as pranchas. 30 piratas pularam para o tombadilho dos mercadores com espadas e sorrisos brilhando ao sol.

“Senõres, este navio está sendo tomado e sua carga é agora propriedade dos Cavalheiros de Gosse. Eu sou o capitão Philip...”

A sentença foi interrompida pelo estalar de 15 cães de mosquete sendo engatilhados por trás de uma pilha de caixas. Homens usando túnicas de mosqueteiros apontavam as armas para a equipe de abordagem. Do porão de carga, emergiram mais 20 homens, estes com uniformes da marinha de Montaigne e apontando rapieiras para os invasores. Detrás deles veio um homem baixo, com trinta e poucos anos, usava uma peruca pomposa e um jaco elegante de capitão, chegando ao convés ao mesmo tempo que os piratas largavam suas armas.

“Então confessa ser Philip Gosse? Gosse, desertor da Marinha Real de Montaigne e auto-aclamado pirata? Monsieur Gosse, você e sua tripulação estão presos sob a acusação de pirataria, e serão levados para Charousse onde provavelmente serão enforcados pelo pescoço até a morte diante de Sua Majestade o Rei Leon Alexandre du Montaigne. Homens, ponham essa escória a ferros. É bom que os homens em seu navio se rendam, ou iremos executá-los aqui mesmo e depois tomaremos seu barco. Ah! Tudo o que foi necessário para capturar o notório Philip Gosse foi uma bandeira falsa e um navio disfarçado. Piratas nunca me pareceram muito inteligentes, mesmo...”

“Nem o são os militares pelo jeito, já que aciona a armadilha antes que todos os ratos estejam ao alcance!” Veio um chamado desafiador em um Montaigne com um acento Castille bastante carregado. Sobre a amurada do navio, um jovem de 17 anos, vestido de couro negro com laços e detalhes dourados, e um florete reluzente na mão direita.

“O que é isso? Alguém atire neste bufão.”

Um dos mosqueteiros desviou sua arma em direção ao garoto e apertou o gatilho. O rapaz abaixou-se e o tiro passou sobre ele. Correu equilibrando-se na estreita amurada mesmo com o balanço das ondas, atraindo a mira de outros mosqueteiros que disparavam mas não conseguiam acertar esse alvo móvel. Súbito, enquanto corria, sua lâmina deu um corte preciso em uma corda que segurava uma vela, derrubando o pano grosso sobre os homens que mantinham a tripulação pirata na ponta da espada.

Sua mão esquerda agarrou a ponta da corda recém-cortada, e o peso da vela que caía puxou-o para cima, livrando-o dos últimos tiros e levando-o pelo ar em direção aos companheiros. Estes gritavam de satisfação mas ainda estavam desarmados já que a vela que caiu também cobriu suas armas, e os marinheiros já começavam a se livrar e os mosqueteiros estavam recarregando as armas. O capitão urrou: “Matem os prisioneiros! Matem todos!”

O primeiro homem a se livrar da vela correu em direção a Henry Braudel com sua espada mirando o peito do imediato. Não havia nada que pudesse improvisar como arma, então se preparou para tentar uma esquiva quando o jovem de negro aterrisou com os dois pés no pretenso assassino de Braudel. O garoto chutou a lâmina para o alto e agarrou-a com a mão esquerda.

“Não se preocupem,” disse sorrindo para a tripulação. “Vou arrumar mais para vocês.”

Avançou contra os outros oponentes, em um impressionante espetáculo de esgrima. Cortava, estocava e aparava com ambas as mãos, derrubando os inimigos com a mesma facilidade que um homem chuta cães sarnentos de seu caminho. E a cada oponente vencido, ele mandava uma arma voando na direção dos companheiros, que entravam na peleja junto com ele. Os mosqueteiros desistiram de sua recarga e sacaram seus floretes.

O jovem alcançou o capitão Montaigne e jogou para trás sua segunda espada. O homem baixo sorriu e disse:

“Você pode lutar bem contra esses plebeus, mas eu sou um nobre e um mestre de Valroux. Está perdido.” Cuspiu e sacou rapieira e adaga.

O garoto não prestou atenção. Estava focado em seu ritmo e em adaptá-lo ao balanço do mar. Em posição, balançou sua arma duas vezes diante de si antes de dar um golpe longo, cortando o cinturão do Montaigne e derrubando sua pistola no chão. Na continuação do movimento, com fluidez, enfiou a ponta de sua espada nos adornos da adaga, e com uma leve torção do pulso mandou-a girando no ar para as ondas. Então abaixou sua arma, chutou a pistola do chão e curvou-se a Gosse, que estava atrás dele com seu espadim recuperado na mão.

“Ele é todo seu, meu capitão.”

Gosse adiantou-se e em segundos desarmou o Montaigne. Gargalhou e deu um tapa no ombro do oficial derrotado:

“Você estragou nossa festa, amigo. Creio que terei que confiscar suas armas como compensação.” Então virou-se para seus Cavalheiros: “De volta ao Uncharted Course, rapazes! Não esqueçam de levar a pólvora deles conosco, para tirar as idéias malignas da cabeça deles!”

E, enquanto pulavam de volta ao seu navio, carregando 8 canhões de bronze novos em folha, gritavam insultos e provocações aos Montaigne desmoralizados. Braudel, no entanto, apenas se aproximou do jovem Espada, um tanto embaraçado:

“Muito bem, garoto. Acho que lhe devo desculpas. Salvou minha vida e provou seu valor. Lhe devo uma, e o reconheço como um verdadeiro Cavalheiro!”

“Não é necessário desculpar-se, senhor. Estava certo. Eu não sou um marinheiro, não sei como ser um e não sei se quero aprender a ser. Pensei a semana inteira sobre o que estou fazendo com vocês, e tudo que consegui aprender observando foi pra que serve cada corda. Temo que se não encontrarmos com outros navios, sou apenas um peso morto.”

“Quanto a isso você não precisa se preocupar, rapaz! Encontramos outros navios o tempo todo, seus talentos nos serão muito valiosos, principalmente se puder nos ensinar um ou dois de seus truques! Venha, o que posso fazer para agradecer-lhe?”

“Pode começar me chamando de Torvo, ao invés de Torbo.”

 


 

No outro navio, o capitão Montaigne balançava seu punho no ar com muita raiva. Fora humilhado, e teria sua vingança mais cedo ou mais tarde.

“Eu me vingarei, Gosse! Não escapará de minha ira! Demore anos. Demore uma vida inteira! Mas irei lhe pegar. E este garoto também pagará, eu juro!”